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A arte e o presente

Atualizado: 5 de nov. de 2018

Encontros da dança com a realidade.

Espetáculo "O Que Ainda Guardo" da Quasar Cia. de Dança (GO). Foto: Marcus Camargo / Divulgação.

A Arte não tem, ao contrário do que muitos alegam como requisito de sua qualidade, a obrigação de situar-se politicamente no dado contexto em que aparece. Nossa capacidade de apreciar objetos e manifestações artísticas de outros tempos e culturas é indício básico de que há valores estéticos que vigoram para além do momento presente da criação. No entanto, no cânone das grandes obras da humanidade figuram aquelas que, com a transformação ou exímia aplicação da técnica, melhor lograram manifestar as contradições e o espírito de sua época. Nas artes da cena, uma arte coletiva, de comunhão entre artistas e público, isso se faz especialmente válido e evidente.


Tal reflexão nos vem à mente devido aos fatos do último dia 28, domingo, quando se encerrava a temporada do espetáculo O que ainda guardo da Quasar Cia de Dança no teatro Goiânia. Mesmo dia em que se encerrava o segundo turno das eleições na qual foi eleito Jair Bolsonaro. Alguns espectadores entraram na sala, às 19h, tendo visto parciais que já indicavam o resultado da votação. Outros ainda ignoravam a apuração. A tensão social provocada por uma disputa eleitoral polarizada e agressiva, de muita desinformação e promoção do medo, podia ser facilmente sentida ali no teatro, num meio e entre um público que histórica e sabidamente se alia, com mais afinco do que a média, ao espectro político que sairia derrotado das urnas.


O clima, portanto, era de tensão e até de insegurança, enquanto a Quasar, com esse trabalho, comemora seus 30 anos homenageando os 60 da Bossa Nova. Assim, o momento social da apresentação estabelecia uma atmosfera de derrota que contrastava de forma profunda com o caráter celebrativo do espetáculo. Que se credite a dissintonia e o baixo apelo da proposta à infelicidade dos nossos processos políticos, agravado na ocasião pela infeliz coincidência de datas, mas o que fica é um espetáculo que pouco nos tem a dizer sobre o mundo e sobre nós mesmos. O momento da companhia e as origens do novo trabalho também podem apontar razões para a pouca profundidade do trabalho. Uma empresa de joias que lançou coleção com o tema bossa nova convidou a Quasar para a elaboração do espetáculo, o qual representa um respiro de vida no futuro incerto da companhia que há dois anos anunciou o fim das atividades devido à falta de recursos.


A Quasar nunca adentrou por temas e formatos muito ousados e de maior peso crítico, seus trabalhos sempre tiveram certa leveza e também humor. O que Ainda Guardo não destoa do histórico da companhia: é um trabalho bem feito, com boa execução, esmero visual e apresenta interessantes manifestações corporais dos ritmos e dissonâncias da Bossa Nova. O que parece ter expirado é justamente o tom e o formato que consagrou a companhia. Essa “dança contemporânea para assistir” que com o tempo cristalizou o que deveria ser orgânico e formatou uma ideia muito fechada do que pode ser um espetáculo de dança. Como exemplo disso, as entradas e saídas dos dançarinos são de uma frieza e neutralidade, as quais, se apresentaram apelo nalgum momento, agora são opção previsível que enfraquece o conjunto. O humor proposto tampouco supera os pulinhos sentados e o bumbum para cima, assim como as narrativas que surgem com considerações sobre o feminino ou a solidão têm tratamento superficial.

Espetáculo "Protocolo Elefante" da Cena 11 Cia. de Dança (SC). Foto: Divulgação.

Compreensivelmente, levando-se em conta os motivos e a realidade de cada companhia, o hiato da Quasar nada tem a ver com o recolhimento por que passou a Cena 11 Cia de Dança e que resultou no espetáculo Protocolo Elefante, que se apresentou anteriormente no mesmo Teatro Goiânia no dia 23, dentro do Goiânia em Cena, e do qual a Quasar também participou. A companhia catarinense iniciou em 2014 um projeto de volta a si e de questionamento sobre o trabalho e sobre porque continuar. Buscou na ideia dos elefantes, que se isolam do grupo na iminência da morte, a metáfora de sua ressignificação e da investigação de sua(s) identidade(s).


Protocolo Elefante é um espetáculo de difícil classificação. Não apresenta nenhuma coreografia com sincronia de movimentos ou em conjunto, e sequer tem muitas interações entre os artistas; da luz à música, passando por cenário e objetos de cena, nada é realista; assim como na diversidade dos corpos e na crescente ausência de figurinos, não há, para onde quer que se olhe, lugar seguro e reconhecível onde firmar a leitura e a interpretação. O jeito é deixar-se levar pelas sensações. Nada faz sentido lógico nem se refere a um dado concreto e, no entanto, Protocolo Elefante se insere como lâmina na realidade, instigando e reverberando em nós as crises do nosso momento social.


Na sua reflexão sobre identidade, o espetáculo apresenta indivíduos que, como dito, pouco interagem e, em seu isolamento, integram um todo que surge poderoso a partir da entrega visceral de cada corpo com sua voz reverberando pelo espaço, com sua nudez relembrando nossas crises e com sua dança afirmando sua existência. As identidades, tal como a dança, não são definitivas e precisas. Não há espaço para afirmações além da de existir, e a Cena 11 aprofunda todas as questões, abre todas as portas, incorpora na forma a metafísica e a precariedade lógica de uma investigação sobre o eu. Daí o erro integrado à dança, não como concessão, mas como composição inevitável e espontânea. A dança de cada artista com os tubos metálicos, na exposição do risco e na apreensão do “erro” iminente, nega qualquer formalização a que a dança possa se sujeitar.


O modo como as ações e performances se desenvolvem no tempo e no espaço, num crescente arrastado que ocupa palco e plateia, altera a atmosfera do ambiente e sensibiliza nossa percepção. As “cenas” do espetáculo alargam a experiência do espectador e aprofundam o impacto de certos elementos quando aparecem. Tudo tem peso e predomina a sensação de incômodo. Dois elementos merecem menção pela força que têm e pela surpresa que provocam. Primeiramente, a música, de grande intensidade e em sintonia com tudo que se passa, que é executada ao vivo por Hedra Rockenbach, que canta, toca e modula som e luz. Finalmente, os próprios efeitos de luz, ousados ao ponto de incomodar os olhos e de criar, com projeção de laser e fumaça, um universo paralelo, nos levam a outra dimensão, onde cada um, com sua identidade, vê e lê o que lhe vem à mente e aos sentidos, compartilhando, porém, a euforia de ver-se naquele espaço e reconhecer no outro a mesma sensação de haver sido tomado pela arte.

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