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A eloquência da simplicidade

Grupo Guará encena peça Os Javalis com texto crítico à apatia social

Rui Bordalo e Allan Santana como personagens sem nome de uma realidade absurda.

Os fatos políticos do Brasil dos últimos anos, talvez desde as manifestações de 2013, passando pelo impeachment de Dilma e pela vitória de Bolsonaro, com o avivamento de termos como golpe e ditadura, não poderia ser terreno mais propício às reflexões propostas pelo texto Os Javalis, de Gil Vicente Tavares. Às vezes, talvez, propício demais para o momento, explicitando indignações e cobranças muito próximas do que se vê, ora nas ruas e sempre nas redes, na voz de uma parcela da esquerda brasileira para a qual os citados fatos políticos recentes constituem uma sucessão de derrotas e fracassos.


O tom conspiracional dos discursos, de qualquer lado, e a agressividade das disputas político-ideológicas são um contexto referencial fértil para a metáfora da invasão dos javalis, que tudo tomaram e a todos comeram. Restam vivos ainda apenas dois homens numa casa: um desavisado que segue calmamente sua rotina, incrédulo do que lhe vem informar o segundo, um suposto vendedor de produtos de limpeza, agitado e eufórico pelo que presenciou do lado de fora. Adaptado da obra O Rinoceronte, de Eugène Ionesco, Os Javalis realiza uma mudança fundamental. Se para Ionesco a animalidade brota do próprio homem, dotado ainda de escolha e consentindo à sua transformação em rinoceronte; para Tavares, os javalis são o outro, uma força externa, que ameaça nossa integridade, redundando o tom acusatório.


Uma discussão mais existencialista, porém, mantém-se no nível dramatúrgico, em que o enredo em looping, com os personagens tomando o lugar um do outro e alterando seus estados emocionais, relativiza as posições de poder e denuncia a volubilidade da nossa ética e moralidade. A interpretação dos atores aprofunda a distância metafórica e a atmosfera absurda com o sotaque português de Rui Bordalo ante a fala mais rasgada de Allan Santana. Mas a diferença que deveria ser dramática, às vezes extrapola para uma dissintonia de estilo entre uma postura mais centrada do primeiro e uma maior malemolência do segundo, a qual resvala, por vezes, na ironia carregada no riso, no humor anunciado e no excesso de gestos.

O tom absurdo e a estética minimalista do espetáculo lamentam esses pequenos detalhes, mas as opções visuais da direção de Samuel Baldani nos parecem muito acertadas. O cenário resumido a uma lona no chão e duas cadeiras é suficiente e sutilmente complementado pela luz e pela encenação. A sonoplastia e ambientação sonora da guitarra de Gabriel Café agrada o ouvido e reforça o estranhamento do todo. O texto de Tavares tem humor, é provocativo e recebe ótimo tratamento do Grupo Guará. Os atores estão seguros, e a direção valoriza as múltiplas camadas do texto e entrega um espetáculo simples, claro e eficiente.

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