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A universalidade do desejo

Trilogia Rural de Lorca em cartaz no Teatro Sesc Centro aborda os costumes em tempos de crise e polarização

As filhas de Bernarda Alba trancafiadas tecem enxovais para ninguém. Foto: divulgação.
  • No dia 19 de junho será apresentada a segunda parte da trilogia, o espetáculo Yerma.

  • E no dia 26, o espetáculo Bodas de Sangue fecha a programação.

A Casa de Bernarda Alba é a última peça escrita pelo poeta espanhol Federico Garcia Lorca, finalizada 30 dias antes do seu assassinato pelas forças nacionalistas espanholas, em 1936. No conflito armado que culminou nos quase 40 anos da ditadura de Franco mesclavam-se ingredientes que, desafortunadamente, não nos parecem distantes a nós, brasileiros na maioridade do século XXI. As divergências ideológicas quanto ao rumo do desenvolvimento nacional, o choque entre as visões tradicionais ruralistas e as pautas urbanas progressistas e o peso e a influência política e social da religião fazem da obra de Lorca e do microuniverso de Bernarda Alba um espelho no qual o Brasil faria bem em mirar-se.


A matriarca recém-enviuvada que comanda a casa e o destino das cinco filhas com mãos de ferro, impondo-lhes o luto e impedindo-lhes o contato com o mundo exterior, evoca o germe da opressão e da violência nos regimes autoritários. A determinação de Bernarda Alba em censurar conversas e risos, esconder as emoções e o choro e sua obsessão por silêncio e limpeza são desmesuras que apontam tanto os excessos como a fragilidade dos meios daqueles que pensam poder controlar, no poder, o comportamento alheio. A arrogância é armadilha que a cega, impedindo-a de ver os desdobramentos trágicos que se desenham entre quatro paredes nos quartos de suas filhas. Esse universo sufocante de opressão e desejo, onde os conselhos moderados da criada são ignorados de um lado e do outro, é uma panela de pressão deixada ao fogo. Quem dirá que não falta moderação no nosso debate político?


O espetáculo da Cia de Teatro Sala 3, apresentado na semana passada no Teatro Sesc Centro é feliz na representação que faz desse universo de desejo e violência ancorado no feminino. As relações de mulheres e irmãs na lida com um masculino distante e proibido provoca ressentimentos e ansiedades que nos antecipam Nelson Rodrigues. Na interpretação, notam-se momentos de ansiedade com o texto, que é dito com desnecessária pressa. Lívia Vergara, com voz grave e imbuída numa rigidez severa, dá peso e anos a mais a sua Bernarda Alba, que felizmente encontra em Amanda Constantino um contraponto de leveza e deslumbre que se aproveitam da idade correspondente da atriz com a personagem Adélia, a filha mais nova. Os pontos extremos do choque de geração, expressões máximas da opressão, de um lado, e do desejo, de outro, estão bem colocados, auxiliados por um elenco equilibrado que une uma ponta a outra com desconfianças, inveja, resignação e medo.


O elenco jovem da montagem serve-se bem da ansiedade das personagens oprimidas, dando-lhes frescor e atualidade, o que abre conexões para as discussões do feminino no presente. Se nisso se ganha, não deixa de estranhar que algumas personagens cuja idade o texto aponta como por volta dos 40, vejam-se tão jovens como são as atrizes. O que se torna motivo de riso para o público de hoje e que daria peso dramático para o público dos anos 40, poderia ser suprimido na adaptação. As distâncias, sociais e teatrais, para com o contexto original da peça são evidentemente enormes e as opções visuais e cênicas do diretor Altair de Sousa aprofundam o que há de simbolista no realismo de Lorca. A sonoridade do órgão e os cantos tradicionais em coro criam atmosfera ao mesmo tempo opressora e sublimada. A mudança dos tons claros e da brancura (sugeridas no texto) pelo negro, pela penumbra e pelo gótico suspende aquele universo rural dos anos 30 e universaliza o seu emaranhado de paixões, angústias e martírios.

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