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Abundância e falta

Fartura de elementos não reflete a riqueza poética de Mia Couto, que diz muito com pouco.

"A carne eram já borboletas vermelhas". Foto: divulgação.

O Centro Cultural UFG, às vezes nos esquecemos, tem um teatro multiconfiguracional. Tão habituados ao placo frontal, foi com encantada surpresa que ingressamos à sala na última quinta-feira para encontrá-la totalmente remodelada. A plateia estava dividida pelo espaço alternando com mini palcos espalhados pelos quatro cantos da sala. Ao meio, uma estrutura indefinida, de sobre a qual subia um tecido ao teto. O chão coberto de folhas, o ar tomado pela fumaça, uma iluminação fraca em tons de roxo e vermelho. Arrematando a atmosfera contagiante, a trilha de André Machado - compondo com os outros elementos um clima de fantasia e mistério gerador de muita expectativa.


Esse clima criado na ambientação de O dia em que explodiu Mabata-bata, da Cia Trotamundus, de algum modo reverberava certas impressões deixadas pela leitura do conto homônimo de Mia Couto. Das folhas secas no chão às cores quentes que vinham do teto, resistindo ao lúgubre da fumaça, algo havia de fantástico e de rural. A penumbra, no entanto, não deixava que se perdesse a gravidade, e a música melodiosa afirmava a singeleza. A marca desses elementos no texto do autor moçambicano dá profundidade poética ao tratamento de temas graves da realidade recente de seu país: a exploração infantil e as minas terrestres que se espalhavam por todo o território até poucos anos atrás.


Escrito em língua portuguesa em 1986, durante a guerra civil, o conto narra um dia na vida do menino Azarias, pastor de bois, que não pode ir à escola. Oprimido e subjugado pelo tio, teme o castigo que lhe virá no dia em que o maior boi do rebanho, o Mabata-bata, explode. Da boca de um soldado saberemos que o boi pisou numa mina, mas nas investigações de Azarias, só pode ter sido obra do Ndlati, o pássaro do relâmpago, que às vezes deixa no chão “sua urina”. Expondo o plano de fundo hostil dos campos minados, dos soldados e dos “bandidos” da guerra, mas filtrando-o pela perspectiva das personagens, o texto ressalta o contraste entre a ingenuidade infantil e uma realidade embrutecida e violenta. Mas essa profundidade o espetáculo não alcança.


O quadro inicial é eficiente e provocador, mas a necessidade, pois falamos de teatro, de colocá-lo em movimento, desencadeia uma série de escolhas e recursos que frustram as expectativas nascidas na ambientação, naquele que muitas vezes, como aqui é o caso, é o melhor momento de um espetáculo: justo antes de começar. A opção por iniciar com uma cena lúdica em que se apresenta o Ndlati poderia ser boa, mas resulta dispersiva, pois se apela a distintos elementos como a produção de sons ao vivo e acrobacias no tecido ao centro, ambas com execução vacilante. Além disso, introduz-se a personagem do tio de forma descontextualizada, gerando confusão e complicações à adaptação que, por si, já é um enorme desafio.


A concepção do espetáculo busca tematizar a negritude e certos aspectos culturais de matriz africana e, não fosse por um único ator, todo o elenco seria negro. Essa intenção, que faz sentido no Brasil ao trabalhar um texto do continente africano, não reflete um dado da obra original, e, novamente, é algo que surge às custas de complicações do enredo e da harmonia da história. A intenção parece boa, mas carecia de menos do que imaginaram os artistas. A avó de Azarias vira, na boca dos soldados, uma feiticeira. Ela lida com plantas e age como curandeira, invenção que requisitou, pois esta é a única explicação possível, que o tio Raul tivesse a perna machucada.


E assim são vários os elementos e as adaptações que não aportam aos sentidos da obra. Existem como ajuste dramático ineficaz ou contorno a problemas criados pela ambição da companhia, mas que, pela execução insatisfatória ou pela confusão que provocam, terminam por abortar a si mesmos. O espetáculo se perde em intenções e deixa de valorizar os sentidos e os fatos fundamentais da história. É surpreendente, por exemplo, que a construção cenográfica de um rio, elemento de grande apelo simbólico no conto, sirva apenas a um pretenso apelo visual. Azarias atravessa o rio como quem sobe na calçada falando ao celular: mete um pé e sai, e daí já está envolvido com outras coisas.


Há ainda uma confusão de linguagens, além de faltar cuidado com detalhes às vezes não tão pequenos. De nada servem as folhas no chão, o figurino característico, a linguagem carregada se vemos algumas cadeiras que parecem saídas da escola mais próxima; se, num jantar inventado, os atores comem uma comida invisível quando em todo o resto da peça cada pedrinha, ramo ou curativo existe como objeto de cena. De nada adianta a eleição de um texto africano, de um dos grandes autores da língua portuguesa; a evocação de um imaginário rural e o apelo ao fantástico; nem a criação autoral de uma trilha presente em todo o espetáculo, se, para encerrar a obra, na busca de um suposto peso dramático, insere-se uma canção em inglês. O espetáculo termina com a música Strange Fruit na versão de Nina Simone. Entende-se a referência, o que não minimiza o choque.

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