Com duas peças simples e bem acabadas, Rodolfo Lima nos oferece um mergulho na desilusão e no vazio.

O público da terceira edição do Festival Internacional de Diversidade Sexual e de Gênero de Goiás - DIGO, além dos diversos filmes exibidos, pôde também assistir a espetáculos teatrais e performances que integraram uma programação rica e diversificada. O Festival demonstrou fôlego e garra, tendo sido feito sem qualquer patrocínio além do apoio institucional da Lei Municipal de Incentivo à Cultura e do apoio indireto de colaboradores. Surpreende, desse modo, o bom nível da produção, a diversidade de ações e a qualidade das obras convidadas.
O GO Teatro teve o prazer de assistir às duas obras do ator e diretor Rodolfo Lima apresentadas durante o DIGO. Rodolfo tem mais de quinze anos de carreira, a qual conduz financiando a si mesmo. Os dois espetáculos, Réquiem para um Rapaz Triste, seu primeiro trabalho autoral, e Bicha Oca, não requeriam da produção mais que uma cama para o primeiro, e uma mesa para o segundo. O resto do cenário, objetos de cena e o vestuário cabiam na mala que trouxe de São Paulo. Um homem e uma mala, dentro deles, todos os sonhos do mundo, acompanhados da consciência reticente de que não se é nada, não se será nada, nem se pode querer sê-lo.
Seja pela voz de Alceu, um homossexual velho e enlouquecido, ou através das reflexões de Alice, uma senhora solitária e desencantada, temos, nas duas peças, para efêmero deleite, mas duradoura reflexão, um retrato contundente e cru da solidão, do vazio e do peso do tempo. Ousaria dizer que o tempo é o antagonista dessas personagens, é sua tragédia, passando inexorável, aniquilando esperanças, amores e corpos. De formato intimista, centrado na atuação realista e conduzido por um muito bem delineado desenho textual, os espetáculos são de uma beleza e sensibilidade inspiradoras.
Adaptando à cena escritos literários, Rodolfo Lima demonstra muito domínio e cuidado com seu trabalho, tendo alcançado estilo e identidade próprios que lhe engrandecem a condição de artista e marcam sua autoria. Se bem não dimensionamos o reconhecimento alcançado por sua obra, do qual podem dar pista os muitos anos de existência das peças, não seria muito dizer que, devido ao alto nível e profundidade do trabalho, identificamos em Rodolfo uma referência e um grande nome do nosso teatro contemporâneo. Ele também faz crítica teatral em São Paulo, de modo que, em ambas as áreas, está constantemente pensando o Teatro.
Em Bicha Oca, Rodolfo adapta os contos homoeróticos do escritor pernambucano Marcelino Freire, com os quais constrói o seu Alceu, um homossexual já envelhecido, louco, que rememora com amargura os casos e aventuras do passado. Nostálgico, Alceu encara com dificuldade as mudanças recentes da realidade gay, e a liberdade até então conquistada o desloca, aprofundando sua solidão. Se a certo ponto seu discurso agressivo contra as práticas da comunidade gay atual começam a soar forçosos e ingênuos, Rodolfo interfere. Com uma excelente composição de níveis da personagem, deixa aflorar a consciência sã e honesta de Alceu, essa sim aderente ao discurso da obra, não sujeita ao autoengano e ao ressentimento para os quais o arrasta sua loucura. Diferidas as consciências da obra e da personagem, a primeira se engrandece à medida que aprofunda a miséria da segunda.
Em Réquiem para um Rapaz Triste, Rodolfo se supera. Ou não repetiu o êxito, já que a obra é anterior à Bicha Oca. A partir de textos do escritor gaúcho Caio Fernando Abreu, inspirado em sua mãe e outras referências femininas, dá vida à Alice, uma mulher passando da meia idade, que fuma como respira, chorando sua solidão, seus abandonos e sua descrença. Ela lamenta estar “fora da roda” que roda “com todo mundo dentro” ao mesmo tempo em que ensaia a autoafirmação desde esse lugar.
O que em Bicha Oca são lapsos de lucidez, em Réquiem é estado contínuo da personagem. Alice vê-se a si mesma, e a nós, com a claridade e a acidez de que lhe dotam as frases fortes, as reflexões angustiantes e os questionamentos existenciais marcantes na obra de Caio F. Abreu. Alice, mais que Alceu, pode ser qualquer um de nós, talvez por essa consciência feroz, talvez pela simplicidade do seu vazio. Talvez por ser mulher. Réquiem é uma peça que envolve mais o espectador, não há quarta parede e as reflexões da personagem se transformam quase numa conversa com o público. Se Alceu, corrompido em sua sanidade mental, refugia-se na imaginação e na memória, Alice não tem subterfúgios, te olha no olho e pede socorro.
Rafael Freitas