Ator famoso e grande elenco, em peça de Nelson Rodrigues, aterrissam em Goiânia (de como vender teatro na terra do pequi).
Sem desafinar com a divulgação da peça nos meios de comunicação nem com sua apresentação sonora na sala do teatro, comecemos por onde se deve: Malvino Salvador. Ele é a locomotiva que prediz o sucesso da montagem. O ator global encabeça o elenco, que traz ainda outro nome que ressoa nas memórias mais atentas do panteão televisivo: Mel Lisboa. Contando ainda com a consagração do autor e de sua obra, o nome de Nelson Rodrigues é o arremate do êxito – comercial, ao menos.
Se com “êxito” nos valemos da ressalva, o “sucesso” a ela não nos obriga: de menor amplitude, tem valor absoluto. Boca de Ouro é um sucesso. Depois de temporadas em São Paulo e Rio de Janeiro no ano passado, a peça está em circulação nacional por capitais e cidades menos relevantes no circuito como Campo Grande, Uberlândia e Goiânia. Por aqui, na segunda apresentação, no domingo, casa quase lotada no Teatro Madre Esperança Garrido.

Antes do espetáculo, em meio a selfies, fotos do telão com Malvino Salvador e postagens no Instagram, as peculiaridades vão reforçando as diferenças entre esse teatro de apelo (e alcance) comercial, com ingressos de 70 a 100 reais, e a nossa produção local, de público modesto e financiamento justo. O público é outro, muito distinto; nenhum rosto conhecido como é praxe se ver em “dias normais”; é um público que muitos diriam não consumir teatro, e, no entanto, aí estão, dispostos a pagar.
Pagam, é certo, por algo que Goiânia quase não lhes oferece: um teatro de apelo popular, num formato mais tradicional; entretenimento com qualidade de produção e algum valor estético. Teatro comercial bem feito. O quanto do nosso insucesso e do sucesso de Boca de Ouro se deve à nossa pouca diversidade estética, à imaturidade da nossa cena ou a Malvino Salvador, resta pendente de investigação.
A peça Boca de Ouro é classificada por Sábato Magaldi como uma das tragédias cariocas de Nelson Rodrigues. Trata-se da reconstituição de um episódio da vida do sanguinário bicheiro, conhecido como o Drácula de Madureira, através de diferentes relatos de sua ex-amante, Guigui (Lavínia Pannunzio). A cada versão ela reconta, segundo as afetações do momento, como e pelas mãos de quem se deu o assassinato de Leleco (Leonardo Ventura), marido de Celeste (Mel Lisboa).
A montagem da Cia Melodramática Brasileira tem um eficiente elenco de apoio que faz de Malvino Salvador um carro chefe que não arrasta nada consigo, é empurrado pelos demais. O fôlego que lhe falta, sobra em Lavínia Pannunzio, Mel Lisboa, Leonardo Ventura e, especialmente, em Chico Carvalho, que interpreta o repórter Caveirinha e chega a abusar do poder cênico e do carisma que conquista com seu talento e tino cômico.
O diretor Gabriel Villela aposta na ironia de um estilo melodramático, que confessa seus mecanismos e “entrega o ouro” nos seus momentos de clímax, criando oportunidades cômicas que Mel Lisboa aproveita com inteligência, caindo também ela nas graças do público.
Se Malvino Salvador destoa, em sua defesa se poderia dizer que são maiores suas responsabilidades. Sua personagem é o ponto de fuga dessa ironia cômica da encenação, é o quebre que deixaria ver a tragédia e a crueza de sua jornada, irrompendo por vezes de forma mais naturalista, mais veemente e impulsiva. Malvino atua nessa chave, com um desempenho que não difere do que se vê dele na TV. Porém, faz regra do que deveria ser exceção, torna constante o que deveria ser ruptura. A ironia da ironia e a mitificação de Boca de Ouro pedem que ele se despregue de um todo que Malvino Salvador não chega a integrar; exigem uma consciência de níveis com a qual o ator não tem desenvoltura para lidar.
Boca de Ouro, nascido numa pia de gafieira e ali mesmo abandonado, quando poderoso, troca todos os dentes por postiços de ouro. Diz-se dele que derrete as alianças das mulheres com que se envolve para terminar o seu caixão dourado, e até que o termine, crê-se imortal. Pela atração que desperta, mas também pelo temor, vai desfazendo lares, desmascarando hipocrisias e revelando os interesses ao seu redor. Sua força e poder escancaram a fragilidade dos seus próximos, das convenções e da moral carioca nos idos anos 50.
A concepção de Villela para o espetáculo é exuberante, ambientando-o numa gafieira de época, uma espécie de cabaré dos anos 20, em clima de carnaval, com direito a confete e serpentina. Tudo embalado por sambas-canção renomados na voz de Mariana Elisabetsky, que às vezes se inserem de forma deslocada, prejudicando o ritmo da peça.
A montagem certamente diverte e não desonra o texto de Nelson Rodrigues. Porém, esbarra num exagero de elementos cênicos e às vezes se perde nas concessões ao público a que parece ver-se obrigada. Como se não confiasse inteiramente na proposta irônica de melodrama, cômica por si só, e entregasse certo número de piadas prontas e apelações ao ridículo. Prática que deve haver se acumulado ao longo das temporadas e que se intensifica inclusive dentro de uma mesma apresentação, como deixam ver as liberdades que se dá Chico Carvalho em cena. Parece estar aí um dos reveses de um sucesso comercial.
Rafael Freitas