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Contra a sensibilidade domesticada

Grupo Máskara completa 20 anos de experimentação e provocações ao espectador de teatro


Cascando Beckett, do Máskara Núcleo de Pesquisa, se apresentou no último dia 11 de novembro no Teatro do IFG. Este é dos mais recentes trabalhos do grupo, que há vinte anos se dedica a uma profunda pesquisa de linguagem, ancorada, em grande parte, na variada e disruptiva produção literária de Samuel Beckett. Digo literária pois o grupo se aventura a trabalhar não apenas com sua produção dramática, da qual Esperando Godot é o grande título – tendo sido a primeira montagem do grupo e à qual retornam em 2023 – mas também com a poesia de Beckett, com seus experimentos em teatro e com textos que subvertem o caráter dramático e narrativo da cena a um nível do qual Esperando Godot sequer se aproxima.


Tudo que confere à obra de Beckett um lugar na cunha do dito Teatro do Absurdo e que em Esperando Godot é germinal, em Cascando (título original) se amplifica e domina o “espetáculo”. Mas ressaltemos que tanto Beckett quanto o Máskara já foram ainda mais ‘absurdos’ em outras ocasiões. Cascando é um texto para rádio, e na encenação do Máskara reconhecemos Beckett em seus artifícios contemporâneos: a dilatação das ações e da palavra no tempo; as dinâmicas cíclicas; a renúncia à narrativa, à situação; a motivação confusa das personagens e até a ausência daquilo que se nomeia o tempo todo, mas nunca se torna presente. Se antes Godot, agora Maunu.


Fazemos o paralelo com Esperando Godot para termos no que agarrar-se. Mas sendo o texto originalmente pensado para o rádio, sem uma concepção cênica, tudo se torna ainda menos palpável às mãos da nossa racionalidade. O esforço do Máskara de trazer ao palco e corporificar o texto não vai no sentido de aplacar esse abandono, ao contrário: a concepção do espetáculo reverbera na visualidade e na sonoridade essa sensação de confusão, essa profusão de sinais reconhecíveis, como as palavras, mas que chegam até nós como peças de um quebra-cabeça que nunca conseguimos montar. Estamos noutro lugar: um sonho, um delírio, uma alucinação.

Destaque para o trabalho visual e sonoro que nos mantem nessa atmosfera do princípio ao fim. A luz é a justa e necessária para valorizar os atores e o cenário, mantendo contornos de sombra e ambiência que circundam a cena como uma etérea moldura, trabalho de Allan Lourenço e Luciene Araújo. Assinado por Wagner Gonçalves, o cenário de janelas nos remete a Beckett, mas as raízes sobre as quais se assentam, típicas de um manguezal, nos deslocam da urbanidade para algo mais ermo, para a praia de que nos informam o texto e o marulho da trilha sonora. Há ainda velas pelo palco ao redor da cena, e manipuladas por alguns atores, que servem ao que as velas cumprem bem: dão calor e um clima bucólico, textura e contraste à cena, mas enquanto recurso podem destoar um pouco dos demais.


É nessa atmosfera, e através das janelas, que vemos quatro dos atores em cena, com figurinos de Sá Ribeiro: o torso neutro e ajustado, grandes saias brancas com desenhos de raízes, como as do cenário, e a testa e o olhar coberto por uma franja de linhas. Outros dois atores percorrem o espaço ao redor das janelas durante todo o espetáculo, com movimentos em diferentes níveis e pouca velocidade, reforçando o caráter onírico do conjunto. Todo o quadro funciona, mas como teatro, ele precisa se mover. Todos os elementos postos precisam se articular e fluir em conjunto, se não visando à construção de um sentido dado, o que não interessa a Beckett nem ao Máskara, ao menos na composição de uma potência cênica, na concatenação dos efeitos estéticos, na elaboração de um “todo significativo” maior que suas partes.

Cascando Beckett chega ao final de forma satisfatória, encerrando-se a si mesmo, como um universo que se deu a ver por um momento e se apagou. Um sonho truncado: a história que nunca começa, o Maunu que nunca se levanta, corpos que sobem e descem, janelas que abrem e fecham. Movimento sem avanço, como as ondas na areia. O que não flui (ou reflui) do mesmo modo é a interpretação, a relação dos atores com o texto. Entre o quadro que surge e desaparece, falta preenchimento.


A chave absurda dada à articulação do texto às vezes cai em lugares comuns da experimentação com a palavra, aplicam-se estranhamentos sem efeito ou emoção, e por ora o texto é dito de forma afetada, mas sem impacto. O propósito cênico do trabalho com a palavra não parece bem definido, e o espetáculo aporta, mas deixa os atores morrerem na praia. Jhamila Oliveira demonstra sensibilidade, tem bons momentos em que entra com o texto na sintonia do que ocorre ao seu redor.

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