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Decifrar-se e viver

Poesia e existencialismo marcam a nova peça do Grupo Trupicão.

Mazé Alves (foto) divide o palco com o diretor Sandro Freitas. Foto: divulgação.

O espetáculo A quase dor de uma intensa alegria encerrou sua temporada de setembro na terça-feira, dia 25, no teatro Goiânia Ouro. Após o fim da última edição do Goiânia Canto de Ouro, a casa voltou a receber espetáculos teatrais depois de ter ficado mais um longo período com as salas de teatro e cinema fechadas. O morre num morre desse tradicional centro cultural, em pleno centro de Goiânia, é uma triste história da nossa cidade. Apesar de suas limitações físicas e espaciais, a sala – adaptada após a divisão em duas de uma antiga sala de cinema – é perfeitamente capaz de abrigar diversos tipos de espetáculos. O público goianiense certamente coleciona na memória mais de um ótimo espetáculo, local ou nacional, que já se apresentou ali. O teatro segue mal equipado e surpreendente como a prefeitura não zela, governo trás governo, de sua única e modesta sala teatral.


Falando em morre num morre, o espetáculo assistido é um exemplo mais feliz de ressurreição. Vinte e cinco anos depois de sua primeira versão, Sandro Freitas e Mazé Alves remontam a peça com que praticamente iniciaram suas carreiras profissionalmente. A quase dor de uma intensa alegria tem dramaturgia e direção do próprio Sandro Freitas, que reuniu diversos fragmentos de textos de Clarice Lispector, Fernando Pessoa, Dante Milano, Carlos Drummond de Andrade e Augusto dos Anjos. Diante desses nomes e diante do próprio título da obra, extraído do livro Água Viva de Clarice Lispector, a impressão é verdadeira: o texto é puro lirismo, cheio de indagações existenciais, questionamentos sobre a vida e a morte, sobre a felicidade, a liberdade, investigações da condição humana e embates com deus. Fazer de todo esse material poético uma engrenagem dramática é um complexo desafio, que, ressalvados alguns êxitos cênicos, não é cumprido a contento.


A amarração dos textos não estabelece um contínuo narrativo, tampouco elabora personagens. O que se vê é a sobreposição de estados de espírito, conflitos internos e fragilidades do eu que se alternam e se movem entre os dois atores. É como se, encarnando a vida e a morte de que tanto falam, aqueles seres no palco morressem e nascessem a cada cena, a cada nova perturbação, a cada agrura que vida lhes impõe. O melhor mesmo é renunciar ao anseio de unidade e apreciar cada momento pelo que ele oferece. Diante da ausência de um desenho transversal de personagens, a riqueza reside na multiplicidade das leituras possíveis. Ora parece que dois são as distintas faces de um só; para em seguida se mostrarem como um homem e uma mulher; e logo retomarem um jogo que aparenta opor o adulto à sua criança interior, ou criador e criatura.


De alguma forma, isso é o que também acontece com a atenção do espectador, que requer um reposicionamento constante, haja vista não encontrar na encenação o amparo ou a base segura para as divagações do texto. Pecam nesse sentido a relação com os objetos de cena, por vezes displicente, a iluminação imprecisa, e certa falta de acabamento ou limpeza geral, a exemplo de quando objetos são deixados em qualquer canto e acabam atrapalhando a movimentação da cena mais adiante. Há cenas fortes, de grande apelo visual e dramático, mas infelizmente não se pode deixar de vê-las sem acometer-se por um pesar de que faltou um trabalho mais elaborado de composição, que tanto as valorizasse quanto preparassem sua chegada. Os recursos audiovisuais, com uso de projeção, trazem imagens bonitas e dão a ver certos aspectos do processo de criação, principalmente em relação ao trabalho de Mazé Alves, quem se destaca com uma energia vibrante e perene, dando vigor e verdade a cada distinto momento vivido.

Rafael Freitas

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