"a memória é uma ilha de edição"

Cuando Pases sobre mi Tumba - Festival MIRADA - 16/09/2022
} Olha, mas não deu nem uma semana que o Godard cometeu suicídio assistido na Suíça, lá venho eu assistir uma peça sobre o tema. Aliás, será esse mesmo o tema de Cuando pases sobre mi tumba, texto e direção de Sergio Blanco? Porque tem tanto tema ali e tanta beleza que nós tudo ficaríamos impressionadíssimos se fôssemos deslindar a peça toda.
Nas palavras de Jack, the Ripper, vamos por partes. Não estranhe a piada macabra porque nós vamos conversar aqui de uma peça sobre necrofilia, suicidio assistido, a vida e morte de Sergio Blanco. Informamos que nenhum Sergio Blanco foi ferido, mais do que o necessário, durante a produção dessa peça. Qué dizê, uma forma bastante livre, adaptada e recriada da vida dele. Afinal, é mais uma peça de autoficção. Sim, segunda peça de autoficção hoje. Esse dia 16 foi o dia da autoficção no MIRADA. Pelo menos pra mim. Claramente, este é outro gancho dramático que eu crio aqui para que você fique instigado a ler sobre o tal outro espetáculo que, sim, está em um texto aqui por perto.
Três atores em cena começam o espetáculo narrando como morreram - eu avisei que teria morbidez? Pois então, vai ter. Os atores explicam como se dará a trama, situam a ação e distribuem as personagens: um deles será Dr William Godwin, médico suíço de uma clínica de suicídio assistido; outro será Khaled, jovem iraniano, estudande de caligrafia medieval, preso em londres por necrofilia; o último será Sergio Blanco, dramaturgo e diretor franco-uruguaio que entregará seu cadáver a Khaled depois de utilizar os serviços do doutor Godwin.
Existem alguns encontros na vida que são definitivos. Por exemplo, alguns anos atrás eu li o título de uma peça do Sergio Blanco e sabia que ele era um bom dramaturgo. A peça era outra e se chama O Bramido de Düsseldorf - ninguém duvida das qualidades deste homem agora que leu esse título. O que você não imagina é a perfeição de Cuando pases. Eu deveria catar ali um dicionário de adjetivos mas invoco aqui aquele meme da GaGa: talented, brilliant, incredible, amazing, show stopping, spectacular, never the same, totally unique, completely not ever been done before, unafraid to reference or not reference. Talvez, mas só muito talvez, esse meme resuma minha sensação.

Primeiro, a naturalidade com que os atores transitam entre personagens é indescritível. Não há quebra ou melhor a quebra de personagem é uma continuidade sem violência alguma. Seja com humor, seja com lirismo, seja com drama, eles transitam entre seus selfs e suas personagens, entre narração e diálogo, entre referências e memórias, entre mentira e verdade.
E como um texto pode ser tão perfeito? A prova absoluta de que a narrativa e a "pós-modernidade" não se excluem. Coloquei nossas amigas aspas porque o termo às vezes soa pretensioso e aqui não há nada disso. Seja citando outros textos, refletindo sobre arte ou contando a história das três personagens, jamais se é piegas, tolo ou sequer banal. É um texto de extremada beleza. Eu não sou capaz de dizer tudo o que ele contém. É preciso no balanço de todas as suas facetas caleidoscópicas. Eu percebo que estou prestes a fazer aqui minhas Variações Goldberg sobre o tema da beleza deste texto e, como não sou Bach, cansaria a sua beleza.

Quando o Sergio me pediu que lesse para ele este texto que você acaba de ler, eu esperava que ele acabasse por rasgá-lo com os dentes. Ele disse: "Por favor, não coloque um espantalho na minha frente e peça que eu dance com ele". Eu pedi desculpas mas não saí. O Sergio me olhou como quem quisesse ver a raiz dos meus cabelos e se foi. Ainda estou esperando seu telefonema, Sergio. (toca o telefone. É engano). }
Danilo Chaves é ator e dramaturgo. Ele viajou ao festival a convite dele mesmo - mas se quiserem me convidar pra ver qualquer coisa é só me procurar em @odanilochaves em todas as redes sociais.