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Efeito manada, dentro e fora dos palcos

Agrupação Teatral Amacaca traz a Goiânia o espetáculo O Rinoceronte e demonstra a força de um coletivo em sintonia

A Agrupação Teatral Amacaca (ATA) é conhecida dos goianos. Nossos vizinhos de Brasília já estiveram por aqui em outras ocasiões, num intercâmbio que se facilitava pela proximidade de Hugo Rodas, que os dirigia, com muitos artistas da cena local. Em 2018, trouxeram para cá os espetáculos Adubo e Ensaio Geral, cujas críticas você lê aqui no GO Teatro. Dessa vez, desembarcaram na cidade com o espetáculo O Rinoceronte, montado em 2019, primeiro ano do governo que se acaba em cerca de um mês.


Nos últimos anos, surgiram pelo país algumas montagens desse texto de Eugène Ionesco, cujo teor e a representação que faz do surgimento do fascismo na Europa do século XX começava a ressoar por aqui em vista das movimentações políticas que encaminharam a extrema direita ao poder, difundindo discursos segregantes e reacionários que se alastraram de forma massiva e com amplo apelo popular. Se em 2019 a coisa se mostrava de modo incipiente, as eleições de 2022, e ainda o que se verifica após o segundo turno, demonstram de forma indubitável o enraizamento preocupante dessas forças em nossa sociedade.


Hugo Rodas nos deixou em abril desse ano, não está presente para ver a que ponto chegaria o descarrilhamento dos nossos valores sociais e democráticos. Mas seu espírito rebelde e sua voz sempre disposta ao manifesto, à crítica, não se furtaram a apontar aquilo que se assomava aos primeiros sinais de alerta. Sua genialidade e a energia de seus trabalhos farão falta. A Agrupação Teatral Amacaca veio sem Hugo, que sempre marcava presença na primeira fila em seus espetáculos, mas o grupo representa o seu legado. “Hugo vive”, nos diz a atriz Camila guerra. E nós só temos a agradecer à continuidade do trabalho da ATA.

Anteriormente, assistimos a uma sessão das primeiras temporadas de O Rinoceronte, em Brasília, no começo de 2020, pouco antes que a pandemia obrigasse o trabalho a um molho de mais de dois anos por conta das restrições sanitárias. De lá pra cá, como disse, o governo que se iniciava agora se finda, com um saldo de indignidades e crimes que certamente é ainda pior do que muitos já esperavam. Com as eleições de agora, a quantidade de material disponível para referenciar o texto absurdo em nossa própria realidade absurda se multiplicou. A nosso ver, o grupo faz uso excessivo desse recurso, que tem o trunfo de uma identificação imediata com o público, mas que, numa obra como O Rinoceronte, cria poros no universo da representação. As referências factuais e as piadas com bozo e seus seguidores amortecem o impacto que a alegoria provoca quando a reconhecemos como tal.


O espetáculo tem força, o final arrebata e os atores são excelentes, surpreendendo pela sintonia e pela dedicação coletiva que torna possível um acontecimento como O Rinoceronte, obra que é um desafio para qualquer encenador. O texto é picotado, tem ações e diálogos simultâneos, e a encenação da ATA mantém a bola rolando, num jogo de passes ágeis entre diversos planos de cena. Os atores estão em harmonia, atentos e bem ensaiados. Hugo e Amacaca têm seu estilo próprio, uma marca e um modo de comunicar que mantém o espectador vivo e atento.

O trabalho vocal é admirável, assim como o domínio do texto. Embora cheio de atores brilhantes individualmente, a energia do espetáculo pulsa em uma frequência só. Num elenco em sintonia, destacamos o trabalho de Rosanna Viegas que doa toda sua versatilidade na interpretação do boêmio e desleixado Bérenger, quem lhe exige a voz num registro que não é o seu e a construção de uma masculinidade que lhe resulta convincente e carismática.


O que digo a seguir só o digo pelo privilégio que tive de ver duas sessões do trabalho, pela sorte de poder comentar com os amigos inebriados: “acredita que pode ser ainda melhor?” Eles se surpreendem. Talvez algo do espaço de apresentação interfira nessa percepção. Mas há uma questão de energia em momentos chaves, como algumas cenas de transformação, que ganhariam com refinar o trabalho rítmico para favorecer o crescente e o impacto, além de um cuidado com as sonoridades, as batidas no chão, importantíssimas na composição das transformações e do clima que se constrói ao longo da obra.


A ATA tem o enorme desafio de manter O Rinoceronte, assim como seus demais espetáculos, no nível em que o incansável e exigente Hugo Rodas certamente lhes cobrava. Sem o pulso firme e austero de um diretor presente e detalhista, o trabalho de refinamento requer a atenção constante do grupo. Talento não lhes falta, em múltiplas vertentes.

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