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Hysteria Coletiva

Atualizado: 28 de out. de 2022

por Danilo Chaves


Ali naquele vértice de final de século entre os anos 80 e 90 uma doença grassou e colheu vítimas entre uma população marginalizada. As vítimas se empilhavam nos hospitais, abandonadas por suas famílias que muitas vezes se envergonhavam de suas atitudes, de suas escolhas, de suas existências. Você deve ter pensado na pavorosa condição com que foi tratada a comunidade LGTQIA+ durante a epidemia de HIV/AIDS, no entanto, vamos falar aqui da epidemia de histeria que violentou a vida das mulheres no final do século XIX.


O Freud, aquele mesmo que explica tudo, ficou muito famoso com uma paciente, chamada Anna O. - a histérica que ele não conseguiu explicar. Antes de conhecê-la, Freud estudou um tempo em Paris com um sujeito francês chamado Jean-Martin Charcot. Esse tal sujeito era o médico responsável por um hospício, a Salpêtrière que foi uma antiga prisão de prostitutas. Naqueles finais de século XIX, ele estudava o grande mal psíquico, a doença da moda, um mal que grassava em todas as famílias: a histeria.


A histeria é uma condição médica de sintomas muito variados cuja origem, pensavam os antigos, estava na existência de um órgão pouco entendido pelos homens de ciência: o útero, em grego hysteros. A histeria é uma história, e o homem é o único animal que inventa essa doença. Com ela consegue trancafiar e subjugar toda uma população feminina. Qualquer atitude de uma mulher que fosse considerada desviante do esperado e do desejado, era considerada uma condição psíquica digna de internação psiquiátrica. Fosse a mulher lésbica, tivesse opiniões, gostasse de sexo, fosse politizada, fosse uma pessoa trans, escrevesse, não quisesse ter filhos ou cuidar da casa, não importa qual a atitude: a mulher poderia ser considerada insana, presa num hospício e deixada lá pra apodrecer.


Hysteria, espetáculo do Grupo XIX de Teatro, começa ainda fora do espaço de apresentação. Antes mesmo de entrarmos, na plateia são separados homens e mulheres. Entram os homens e se sentam, observadores. Já estão em cena cinco atrizes, ou melhor, já estão ali as cinco personagens cujas vidas vamos acompanhar mais a fundo. São cinco mulheres presas num hospício do Rio de Janeiro no final do século XIX. Aos poucos vão entrando as outras internas, que até há pouco eram apenas plateia. As internas “mais antigas” vão organizando, fazendo com que as “novatas” se sentem todas juntas no espaço mesmo de apresentação. São apresentadas as regras daquela casa de repouso e começam a se desdobrar aos poucos a história de algumas daquelas mulheres. Eu digo “algumas daquelas mulheres” porque mesmo as histórias de algumas “novatas” serão contadas.


Até o presente momento eu pude falar com segurança sobre esse espetáculo. Agora eu só posso falar como um pobre observador que é arrastado pela força descomunal das histórias dessas mulheres. Precisaríamos de uma mulher que escrevesse sobre o espetáculo para saber tudo o que realmente acontece ali.


Começam as cinco atrizes e nunca saem da personagem. Quando eu digo nunca, é nunca mesmo. Nós homens chegamos e não existem atrizes, existem as internas. Entram as “novatas” e continuam aquelas mulheres vivendo ali. Existe uma integração tão grande entre atriz e personagem que mesmo os improvisos parecem texto ensaiado há muito tempo. E improviso aqui é uma parte fundamental do espetáculo porque as atrizes vão o tempo todo interagir com as mulheres da plateia: perguntar, conversar, pedir ajuda… É impossível dizer o quanto as histórias das personagens depende das outras mulheres que ali estão. E é impossível também dizer como é lindo o que cada atriz consegue em suas interações e em suas histórias: humor, drama, frustração, raiva, inteligência, dor, violências. Hysteria é uma mescla sempre imprevisível e rica. A direção de Luiz Fernando Marques torna possível que cada uma dessas histórias seja desenhada plenamente na nossa frente. A utilização de espaços alternativos, a separação do público, a cenografia simples, os figurinos tão bonitos, tudo é um fator a mais para dar liberdade àquelas atrizes criarem um mundo. E nesse mundo nós podemos encontrar não só aquelas cinco personagens de vidas tão dolorosas, mas também outras mulheres com vidas igualmente maravilhosas e que, até alguns minutos atrás, eram nossas irmãs, nossas amigas, nossas companheiras…


A partir dos anos de 1920, a histeria foi pouco a pouco saindo dos quadros de doenças reconhecidas. Alguns sintomas dispersos continuam fazendo parte da classificação de doenças e agravos, no entanto, não existe mais uma doença específica chamada histeria. Ainda assim até hoje “histérica” é um adjetivo utilizado para humilhar mulheres que saiam do comportamento esperado. Além disso, quando nós entramos numa multidão qualquer e de repente atos violentos ou impensados começam a ser cometidos, diz-se que fomos acometidos por uma “histeria coletiva”.


Do meu lugar distante de observador, do meu lugar indevido de observador daquelas histórias, eu fui acometido pela mais linda das Hysterias.



Adendo de suma importância


"Ola Danilo agradecido pelas suas palavras ! Muito bom ter um olhar sobre um trabalho que fazemos há tanto tempo e que vai ganhando dimensões outras ano após ano ! Só senti falta de você citar nominalmente as atrizes executoras da peça :

Éricka Leal (clara) Evelyn Klein (Hercília) Juliana Sanches (M.J.) Mara Helleno (Nini) Tatiana Caltabiano (Maria Tourinho) E as artistas criadoras e co-autoras da obra Gisela Millás Janaina Leite Juliana Sanches Raissa Gregori Sara Antunes

Como diz uma frase final da peça : no futuro em algum lugar se lembrarão de nós !!!"

Oi pessoa que escreveu esse comentário. Sim, muito sim, totalmente sim. Eu queria ter desde o começo citado essas atrizes. O que eu vou fazer aqui não é uma desculpa, porque não tira minha culpa, é antes uma explicação. O programa a que eu tive acesso infelizmente não constava o nome das atrizes. Eu até encontrei os nomes nas internet da vida mas fiquei com receio de ter existido alguma substituição ou coisa do tipo. Seria uma injustiça sem fim colocar um nome e simplesmente tirando crédito de quem merecia. Procurei causar dos males o menor.


Que fique bem claro, a peça existe nessas mulheres. Não é no vácuo, não é numa redoma, não é em lugar nenhum que não sejam essas mulheres. A memória que fica viva em mim não é de um de uma ideia solta, genérica e abstrata. Não! É do corpo, da voz, da energia dessas atrizes. Através delas as histórias me atravessam. Histórias de mulheres, escritas por mulheres, contadas por mulheres e para mulheres. Eu fui um mero observador indiscreto que mais uma vez coloco aqui os nomes dessas mulheres:

Éricka Leal Evelyn Klein Gisela Millás Janaina Leite

Juliana Sanches Mara Helleno Raissa Gregori Sara Antunes

Tatiana Caltabiano

Sejam sempre poderosa lembrança.

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