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Ledo Engano

Colônia - 17/10/2022

#Sesc Aldeia de Artes


por Danilo Chaves


As coisas mais simples enganam. Nossos sentidos são sempre falseados por alguma idiossincrasia própria que o cérebro tenta remediar. Você olha e acha que vê. Vem a ciência e te explica que o campo de visão é minúsculo e quase tudo que você vê é seu cérebro desenhando para entender o mundo a partir dos dados que ele tira de todo canto. E você segue na vida feliz, vendo sem ver porque alguém, que também é você, está imaginando o mundo. É uma das maravilhas desta nossa cachola… Eu, por exemplo, vejo Sesc Aldeia de Artes, meu cérebro completa Aldeia Diabo Velho, que já nem é mais nome dessa aldeia, e logo eu sigo no mundo feliz sabendo que vou assistir a espetáculos visceralmente lindos.


Meu cérebro não se engana. Ele viu ali na programação aquele nome “Colônia” e ele sabia o que tinha em cada uma daquelas letras. Devo confessar porque não gosto de enganações e patranhas, que meu cérebro sabia porque já tinha visto o espetáculo de uma outra vez e tinha achado uma delicinha. Fui tirar prova dos nove e... confirmado: é uma delicinha.


Você está sentado num teatro, coisa comum na sua vida de pessoa que frequenta teatro [parabéns por ser essa pessoa], à sua frente estão uma mesa, uma cadeira e um quadro escolar. Nada mais. Entra um homem vestido com um terno que não chega a ser surrado, apesar de visivelmente já usado. Digamos, um terno de uso frequente. Ele tem um alforje. Desta tal bolsa que leva a tiracolo ele tira e coloca sobre a mesa: papéis, uma garrafa de água, uma caneca esmaltada e quatro gizes... quatro gisss… quatro gizeles – seja lá qual for o plural de giz. O homem organiza esses objetos. Abre a garrafa, ergue-a no ar e de certa altura começa a encher a caneca. O barulho conhecido da água caindo tem um efeito calmante. Até que a água da garrafa acaba e o barulho continua. O seu cérebro buga, você apura os ouvidos e percebe que está num mundo levemente diferente.


A partir de então o sujeito entra a nos dar uma aula. Primeiro sobres os insetos que vivem em colônias: seus hábitos, suas hierarquias, suas estranhezas. Depois sobre o conceito histórico de colônia-colonização-metrópole. Não só histórico, sociológico. Os lugares que são colônias: seus hábitos, suas hierarquias, suas estranhezas. E até do tempo ele falará. Tudo de modo ordenado, acadêmico. Com a fala mansa, os gestos cordatos, a cadência compassada, ele escreve no quadro escolar alguns conceitos chaves que se desdobram da palavra colônia. Num acúmulo claro de informações a Colônia vai se tornando presente a pouco e pouco. Não aquela colônia com “c” minúsculo, substantivo corriqueiro, e sim aquele Hospital Colônia de Barbacena que de hospital porta o nome porque não poderiam chamar de abatedouro. A morte e a desgraça dos internos desses hospital começa a aparecer como um som de água despejada ao fundo, até que fica caudaloso, nunca para e nos afoga. É um quebra-cabeça que se fecha aos poucos, delicado como aquele homem, e cuja perversidade só conhecemos quando ele finalmente nos faz entender que o pai dele esteve ali naquele moedor de carne humana que foi o Hospital Colônia. Às vezes os nomes também enganam.


A aula que esse homem nos dá somente pode ser suplantada pela aula de atuação que nos dá Renato Livera. Um pequeno sonho que eu tenho é conhecê-lo pessoalmente porque eu sei certo e direito que ele não deve se parecer em nada com o homem que nos fala em Colônia. A capacidade de ser um outro sujeito está estampada em cada gesto bem cuidado, limpo que quase parece realista embora tenha uma aura de irrealidade. A voz mansa que em momentos chave se torna quase delirante e explosiva também não deixa dúvidas da imensa qualidade de ator deste sujeito chamado Renato Livera. Eu quase diria que dá medo a beleza dessa atuação.


A direção de Vinícius Arneiro é tão limpa e tão precisa que é impossível defini-la além dessas palavras. Cenário, figurino, iluminação e som são criados de modo a dar espaço para que aconteça a história e são excelentes nesse quesito. A sensação de que estamos diante de uma palestra, um ambiente salutar e controlado é criada em cada detalhe deles. O texto de Gustavo Colombini tem diversas qualidades de peso: a beleza de sua escrita, a erudição bem dosada, a emoção bem delineada com delicadeza. Um reparo que eu colocaria é que talvez demora-se um pouco a chegar no cerne emocional da história. A palestra domina boa parte de Colônia – e não é uma palestra ruim, já disse que é ilustrativa e muito bem conduzida – mas fica-se imaginando: quem é esse homem que fala tanto e tão bonito? Quando finalmente descobrimos quem é, quando finalmente é feita a ligação emocional a peça é um deslumbre. Não fique aí pensando que a peça não deixa pistas desde o começo. Ela deixa. Pistas muito esgarçadas talvez? Mas ela deixa. Muitas vezes lá quando é feito o encontro emocional, ali quase no fim de tudo, você ouve ecos de falas que estavam lá no começo e esses ecos são sempre iluminados. Frases que se repetem, ideias que reaparecem, iluminadas pelo fogo da nossa própria memória, purificadas agora pelo que nós acabamos de descobrir.


Às vezes você sai de casa pensando que assistirá a uma peça de teatro e acaba recebendo um soco no estômago, chute na nuca, um choque na cabeça e nada disso te impede de sonhar com a beleza que é um ator com toda suavidade contando uma das histórias mais pesadas que temos. Às vezes as coisas mais simples enganam.




Danilo Chaves é ator e dramaturgo. Ele viajou ao festival a convite dele mesmo - mas se quiserem me convidar pra ver qualquer coisa é só me procurar em @odanilochaves em todas as redes sociais.

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