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Mátria

"ba be bi bo bu

ca ce ci co cu

da de di…"


} A peça começa com uma voz em off narrando um mito da criação do mundo pelo amor de Ñamandu. Essa narração é toda feita em tupi-guarani e eu só sei do que se trata porque temos legenda ali no fundo do palco me contando. Logo uma mulher entra em cena e continua a narração ainda em tupi-guarani - aqui as legendas acabam. Outra mulher entra e começa a narrar o que eu creio seja outra história de criação, dessa vez em iorubá. Segue outra mulher que vem narrar - a gente imagina né que seja mais uma história de criação - em proto-latim. As narrações outras nunca param, ficam sotto voce acontecendo, até que em ordem inversa vão acabando, entram outros atores e todos cantam juntos Nave Maria, do Tom Zé. Nessa babel começa Língua Brasileira um jornada musico-poetico-histórica pela criação dessa coisa aqui que nós estamos falando agora. Na verdade, eu escrevendo e você lendo mas entendestes o sentido, né anjo?


Junte Ultralíricos, Felipe Hirsch e Tom Zé num mesmo espetáculo e você terá em suas agradecidas mãos toda a riqueza de uma língua em bandeja de prata. Nós não temos aqui uma didática explicação das fontes e origens desta nossa simplérrima língua. Nós temos uma demonstração cabal e prática, jogada na nossa cara, de como aos poucos evolui, se constrói e surge já formada, para uso e gozo, uma língua.


Língua brasileira é um assombro - tanto a coisa quanto o espetáculo. Durante um largo tempo a força encantatória das palavras e a verve histriônica dos atores segura muito do espetáculo. Porque, coleguinha, até uma parte ali teremos textos em: tupi, iorubá, grego, latim, árabe, saxão e celta. Tudo bem, tem legenda, você pode até entender o que está sendo dito mas não é importante que você entenda. É até despicienda a completa cognição. O importante é se deixar levar. E eles nos levam a paragens lindas cheias de mares nunca d'antes navegados.


Vão aparecer ainda textos em djudío, português medieval, papiamento, mais tupi, bantu até que tenhamos nossa língua brasileira em cena. Tudo emoldurado pelas músicas maravilhosas do Tom Zé que não só costura e explica mas dignifica e expande Língua Brasileira - coisa e espetáculo.

A concepção do Felipe Hirsch é daquelas coisas que você só imagina possíveis em sonho. Muito do espetáculo tem aquele onirismo gostoso em que você cai quando está sendo embalado pelo sono. É feérico, é bonito, é preciso e é grandioso. Que iluminação! E o palco com fundo preto e o chão de areia preta (aquilo era areia, o que era aquilo?). A música ao vivo era filhadaputesca de tão boa. E o figurino? Tudo parece ser feito de papel. Eu já falei que é um sonho e num sonho não se dá nem se exige muita explicação.


Agora chegamos na parte um pouco complicada de falar dos atores. Eu sou ator e é muito feito o que esses seis indivíduos fizeram na minha frente. Como alguém fala sabe-se lá quantas línguas como se tivesse nascido falando? Como eles fazem da palavra - sabe aquela que nos anos 70 todo mundo dizia que estava morta? - como eles fazem da palavra um mundo inteiro? São feiticeiros todos. Só pode. Eu só me sinto vingado da inveja que sinto deles porque, vem cá, como você improvisa em grego, latim ou tupi? Ou seja, a pressão psicológica desse espetáculo é assassina e eles merecem sofrer por entregarem tanta, mas tanta beleza. Os deuses sentem ciúme.


Os dois últimos textos são a definição do espetáculo: duas viagens pela língua primeiro como sonoridade poética depois como força criadora. Não que no primeiro texto não haja força criadora ou que no segundo não haja sonoridade poética. Só estou colocando em evidência o que me chama mais a atenção. São dois rios caudalosos de palavras que nos engolfam e em vez de afogar nos salvam. É a fonte da água da vida.


Esse espetáculo mostra quem somos e como somos através da nossa língua. Pra você ter uma ideia, numa cena antológica eu fui realfabetizado por padres jesuítas e sem perceber estava catequizado voluntariamente. E rindo feliz do desengonçado que é tudo isso. Mas não se preocupe que não temos aqui uma louvação subserviente da história. Aparecem as dores e os traumas que a criação desta língua deixou pelo mundo inteiro.


O espetáculo termina numa nota doçamarga: "aprendemos" algumas palavras em apiaka, uma língua indígena em vias de extinção. O aprendemos vai entre aspas porque eu, para desgraça eterna do meu nome, não aprendi mais que duas palavras: ru, mãe, e kuã, língua. }




Danilo Chaves é ator e dramaturgo. Ele viajou ao festival a convite dele mesmo - mas se quiserem me convidar pra ver qualquer coisa é só me procurar em @odanilochaves em todas as redes sociais.

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