Novo espetáculo da Cia de Teatro Sala 3 encena as vicissitudes do trabalho do ator
por Bruno Peixoto*
Quinta-feira, dia 04 de julho de 2019, às 19 horas, estreou a nova obra encenada da Cia de Teatro Sala 3, sob direção de Altair de Sousa, na Vila Cultural, no Centro de Goiânia, Goiás. A obra é intitulada “No dorso instável de um tigre”, uma homenagem à crônica de Fernanda Torres que foi base para a pesquisa inicial da montagem do espetáculo e que trata das funções, razões, dificuldades e efemeridades do ser ator. O espetáculo traz um investimento da companhia em jovens atores que almejam fazer parte do elenco do coletivo. Uma oportunidade de mudança de ciclo da Cia. Sala 3.
O público desceu as escadas daquele espaço cultural acanhado e curioso, visto que a tendência das produções da Cia de Teatro Sala 3 são encenações na rua ou em salas italianas devido às grandes estruturas cenográficas que geralmente utilizam. O público avançava perguntando-se o que viria a ser encaixotado em um espaço alternativo tão amplo, o que poderia envolver a mais nova obra e sua recepção com os requintes pretendidos por essa produção e seu posicionamento estético?
Com um pequeno atraso no horário de início do espetáculo, o público adentrou o espaço por uma porta lateral, que descortinou um espaço preparado com uma instalação com fotografias, desenhos feitos com sal ao chão, luzes projetadas nos paredões com gobos, o que criou uma atmosfera performática, expressivamente alinhada com a proposta que seria posteriormente apresentada. Era evidenciado um casal de atores e uma espécie de vitrine onde estavam encaixotados (ou assim aparentou), a maioria do elenco, basicamente formado por jovens atores, que espreitavam a chegada de sua recepção.
O espetáculo é iniciado com os jovens atores Anna Bê e Carlos Paiva, que exibiram uma construção de partituras físicas, com rigor na limpeza, beleza e excelente execução que os tornam atores/bailarinos. Apropriaram-se de uma corporeidade dançada e coreografada em composições suaves e intensas, em uma espiral, que os suspenderam aos olhos de quem os via em ação. Uma execução sincronizada e jogada com esmero. Observar duas “feras em sua jaula circular" nos criava uma sensação, ao inverso do que Fernanda Torres chama de stagefright.
Um casal de atores “feras” com seu dorso “arrepiado” para receber magistralmente o público, que iniciou a incursão em uma proposta alternativa e contemporânea. O apontamento d’aquilo que, em inglês, se chama stagefright, ou sua tradução mais próxima, que seria medo do palco, que é muito abordado nos escritos de Fernanda Torres, parece não se estabelecer com os dois atores Anna Bê e Carlos Paiva, que são um primor de prólogo à parte. Os dois enfrentaram seus “medos com coragem e maestria” no início do espetáculo. Foi de extremo acerto ser executado por dois talentosos e fortes jovens atores. O “descortinamento” para o público para o que vinha adiante. A abertura dos caminhos para essa imersão performática.

Elementos da cena se combinaram para criar uma colcha de tessituras que foi meticulosamente pensada na dramaturgia e merece reverências. A responsável por esse trabalho é Gabriela Lima, atriz da Cia Sala 3, que deslizou surpreendentemente com sua experimentação impulsionada na escrita, no dorso das provocações de Fernanda Torres. Ela também organizou as pesquisas e investimentos dos textos e temas do coletivo de novos atores da Cia de Teatro Sala 3, em processo colaborativo. É criada uma malha de seletiva textual contundente, pertinente e absolutamente atual. Gabriela Lima e seu trabalho de dramaturgia é ponto forte do espetáculo.
Um vídeo de depoimentos dos atores foi projetado em um paredão com suas impressões, reflexões e pensamentos sobre a arte da atuação e do ofício teatral. Esses depoimentos nos distanciaram e nos aproximaram (ou ao inverso) da proposta da encenação. Uma frase de Hamlet, de William Shakespeare, impressa no programa do espetáculo, criou um paradoxo com a situação lançada:
"Não é monstruoso que esse ator consiga em fantasia, em sonho de paixão, forçar sua alma e assim obedecer-lhe a ponto de empalidecer seu rosto, ter lágrimas nos olhos, o ar desfeito, a voz cortada, e todo o desempenho e as expressões do acordo com o papel e tudo isso por nada!"
Será mesmo que Shakespeare estava correto quando escreveu essas falas de Hamlet? ...Ou esse excerto da obra Hamlet não coube no programa do espetáculo? Nessa obra o ideal seria... “Tudo isso por tudo”. Talvez assim estivesse melhor colocado. Quando se ouve o depoimento dos atores em um vídeo durante o espetáculo e em seus depoimentos nos programa do mesmo sentimos uma intensidade diferente da que Hamlet aponta.
O elenco é novo e jovem, assim é de extrema importância o empenho da Cia Sala 3 em prepará-los como futuros integrantes (apenas um deles já trabalhava na companhia), pois ainda necessitam aprender a arte de pronunciar, projetar e articular a voz e sua condução. Compreender que o corpo é fruto de trabalho ininterrupto de treino e técnica, e isso, com o tempo, a prática lhes dará. Compreenderão o sentido de ser ator com menos "romantismo” como é abordado pelos mesmos, no programa do espetáculo e em seus depoimentos em vídeo. Muitos depoimentos são piegas e clichês, entretanto o conjunto de atores é agradável e talentoso.
O elenco é de empenho e garra. Vale a pena investir em sua preparação e fazê-los entender que processo e profundidade farão com que se coloquem a serviço da arte da encenação e não ao inverso. Um grupo de atores esforçado, potente e vistoso. Precisam apenas entender a alquimia de moldar sua construção e ação na cena.
Uma figura se destaca em sua singela atuação, com um olhar poético, um corpo preparado e um fluxo de energia na medida certa, sem estereótipos, uma articulação clara e suave e uma execução do início ao fim concentrada e impactante pela singularidade de seu trabalho – o jovem ator Carlos Paiva. Vale o destaque por seu trabalho frente aos demais atores. Poesia no corpo e nos olhos. Um talento a ser lapidado pelas escolhas de condução, propostas pelo seu trabalho desenhado no fluxo da cena. Um performer, que desliza nos oníricos detalhes de sua inserção no todo da encenação.
Uma aula pedagógico-cômica sobre história da filosofia, mitologia e história do teatro nos foi ofertada. Os atores nos afirmam que esse é um não-espetáculo e obviamente as questões dos conceitos amplos de performance nos são pululados na mente.
Voltando às excursões pelo espaço da encenação fomos convidados a trocar de ambiente e duas personas nos esperavam compostas, ou melhor, “descompostas”. Uma explicação narrativa do que se trata o não-espetáculo, da não-representação e da não-atuação. É importante avaliar que os atores Evandro Costa e Rafael Freitas estão em um momento descontraído, divertido e nonsense e por mais que fosse uma estreia, se apresentaram como os atores mais maduros do elenco.
Contemporaneidade em foco, crítica política em voga e as imagens, textos e sons nos transportaram para os prólogos dos cabarés a la Karl Valentin ou a montagens a la mestre Bertold Brecht, em cômicas cenas de narrativas que nos distanciam da imersão imagética provocada, propiciando-nos um olhar meticuloso, que nos apontava para questões contemporâneas, como tecnologia, o atual cenário político brasileiro, as questões do status quo e da memória como elementos de reflexão.
Uma aula pedagógico-cômica sobre história da filosofia, mitologia e história do teatro nos foi ofertada. Nada profundo, mais primordial, que nos orientou a entender e a ter uma ânsia de revisitar Platão, Sócrates, Nietzsche, etc. Os atores nos afirmam que esse é um não-espetáculo e obviamente as questões dos conceitos amplos de performance nos são pululados na mente. Questões levantadas pelo diretor estadunidense Richard Schechner do "não-eu" e "não não-eu" na composição entre ator e personagem ou da "teatralidade" e "performatividade" tão empenhadas nos escritos da francesa Josette Féral, da Universidade Sorbonne e que estão em voga nas questões levantadas nas produções artísticas da atualidade. O limiar das questões ordinário-artísticas. O espetáculo é campo para essas investigações conceituais.
Um trecho do programa nos traz essas questões de existir, resistir e reexistir. Isso é força absoluta de reconhecimento da trajetória da montagem espetacular. Além do que, a arte teatral, em sua atividade ao longo das linhas históricas, se ressignifica a todo instante, de acordo com as intenções e propostas estéticas, as linguagens e investigação de seus artistas, inerentes ao processo coletivo e contextual/geográfico. Repensar e refazer os sentidos não seria diferente na atualidade. Entretanto, um fio de idas e vindas, reestímulo das memórias processuais e coletivas foram abordados no “dorso” não só de quem via a cena, mas de quem a fazia em sua ação.
Teatro é “o lugar onde se vê”, portanto a sala de exposições da Vila Cultural Cora Coralina se transformou em lugar de construção de símbolos, metáforas e de um jogo intenso do homo ludens, como nos aponta Johan Huizinga, e se estabelece em sua ação primordial, o jogo encenado. Uma ressignificação do espaço. Outro ponto forte da obra: sua ocupação espacial alternativa.
Um “caos harmônico” de elementos em situação de desbloqueamento dos sentidos, das plataformas não-convencionais, de reestimulo da memória, que fazem a arte da cena se tornar viva, ressignificante e faz com que ela reexista em nosso cotidiano apesar de sua moribunda, mas mesmo assim, nunca morta, atividade. No dorso instável de um tigre é uma obra mais viva que nunca. A melhor montagem dos tempos da Cia Sala 3. Atual, necessária e um campo de “atuação minado” que traz desafios a toda equipe técnico-artística.
A cena seguinte expõe dois atores, Eduardo Babugem e Gardênia Matos, que executam seu trabalho com parcimônia e um fluxo contínuo de execução, nada de ousado ou surpreendente, mas tecnicamente bem desenvolvido. Outro ponto alto do trabalho está na textualidade envolvida nessa cena, que trata da dificuldade e burocracia enfrentada por coletivos em conseguir verbas públicas e das tendenciosas aprovações de propostas de grupos. Uma burocracia de papéis e dependências de artistas e técnicos aos editais e de suas criações escritas para convencer uma “comissão viciada” e “hipócrita”. Ataque da indignação com a situação do descaso do poder público com a área cultural.

Documentos e folhas de papéis se transformam em um boneco que infelizmente não é manipulado por um artista preparado para esse fim e a poesia quase se perde, mas a mão da encenação não permite, por um fio. Que cena espetacular!
A cena necessita de uma triangulação do performer Eduardo Babugem com a disposição da sala em que se apresenta, para que todos vejam a ironia levantada. Cena primordial, impactante e bem desenvolvida tecnicamente. Necessita de um rigor de organicidade, de maior fluxo de manipulação do boneco de papel, com mais propriedade do performer, que executa seu trabalho com técnica e rigor enquanto performer, mas que precisa de alguns ajustes de escolhas, provavelmente feitas por ele mesmo em uma cena tão impactante.
Vale a compreensão de que quando se escolhe algum artifício esse deve ser executado com afinco. Outras dificuldades são alguns instrumentos tocados ainda timidamente pelos atores Carlos Paiva e Anna Bê. Assim, observa-se que algumas decisões ainda estão em construção: manipulação de bonecos, canto, instrumentos musicais, etc. Ótimas escolhas, mas que devem ser levadas à cena após execução com rigor.
A sonoplasta Rebeca Vasquez pode ousar mais em sua composição sonora, com offs, desconstruções e música ao vivo. Está muito tímida nessa produção e é exímia compositora e criadora. O espetáculo pede mais ousadia sonora e musical em seu andamento. Apesar das escolhas certeiras da compositora, como, por exemplo, um off do presidente Bolsonaro pedindo impeachment de Dilma e resguardando a memória do sanguinário comandante Ustra para nos apresentar uma condenação à ditatura em todos os sentidos que temos sofrido.
Uma orgia performática, em partituras que nos remetem aos ritos iniciais da mitologia de surgimento do teatro. Será que esse retorno à origem não seria fundamental para pensarmos o próximo passo rumo ao futuro da arte teatral?
A cena seguinte é um mister de pré-preparação para a cena dos performers e um desnudamento do corpo para servir de instrumentalização da cena. Uma orgia performática, em partituras que nos remetem aos ritos iniciais da mitologia de surgimento do teatro. Será que esse retorno à origem não seria fundamental para pensarmos o próximo passo rumo ao futuro da arte teatral? Teatro não é ritual de entrega, de jogo, de arte? Então, recobremos e aplaudamos essa proposta de retorno à origem que é factual e fundamental.
Em nossos meios sociais, a arte teatral se tornou objeto das mídias, de construções rasas e medíocres, voltadas apenas para o consumo. Uma abordagem de atenção às escolhas é apontado aqui. Um “sinal amarelo” para certas atividades criadas apenas como objeto e sem processo. Um perigo à integridade social e à função da arte espetacular. A recepção (passiva) não percebe, mas os artistas da cena devem se atentar e saber o que oferecer a esse público “hipnotizado”, contra àquilo que os filósofos alemães Adorno e Horkheimer previam em suas “profecias” sobre a indústria cultural.

Na cena final, um símbolo recorrente nas visualidades de encenação da Cia de Teatro Sala 3. A cruz vermelha que é forte e impactante mas se tornou repetitiva. Uma recorrência que deve ser analisada em instância de reflexão pela direção. Já está repetitivo e tornando-se clichê em sua utilização. Coloridos de luz evidenciam estados de ânimo.
Uma homenagem a artistas da cena é elencada em cadeiras cenográficas e novamente no programa do espetáculo. Pessoas que merecem o nosso respeito. E respeito à Cia Sala 3 por providenciar essas recobradas lembranças, que nos trazem Marcos Fayad, Hugo Zorzetti, Otavinho Arantes, Cici Pinheiro, Júlio Vilela, Ana Paula Carvalho, Marília Furtado, Antunes Filho, Bibi Ferreira, entre tantos outros, que merecem nossos aplausos e as reverências do público, dos jovens atores e de toda sociedade. Pessoas que deixaram um legado de luta e, muitas vezes, de inglórias batalhas.
Tudo isso foi habilmente manipulado pelo direcionamento de Altair de Sousa, que se firma em sua construção das visualidades do espetáculo, a comandar uma equipe técnico-artística que leva pulso forte e focado. Figurino, objetos, luz e a orientação dos novos atores da Cia. Sala 3 cumprem seu ofício com esmero. Aliás, Altair de Sousa, em termos de visualidades da cena, se destaca como um dos grandes encenadores da atualidade em Goiás e até entra em destaque nacionalmente.
O espetáculo finaliza com direcionamento para uma grande carnavalização e nos faz perceber a genialidade da montagem e o quanto processos intensos e profundos são fundamentais, a importância de regressarmos ao ritual elementar da cena. Esses discursos devem ser construídos com fluência, calma e amadurecimento. O movimento político deve ser pressionado. É preciso união e transgressão desse “movimento político, afetivo, transgressor e transcendente chamado teatro”. Utopias? Não... redenção das artes da cena.
Evoé e longa estrada para essa obra que necessita de work in progress para existir e se ressignificar a cada sessão. Boas caminhadas a essa obra que se firma para a Cia. Sala 3. Força a esses jovens atores que se dedicaram por um ano à difusão desses assuntos. Que sua reverberação possa alcançar, no raio de quilômetros, todas as distâncias e geografias que puderem senti-la, viva e necessária. Que o dorso desse tigre permita caminhadas intensas e transgressoras. Vida longa à arte necessária”.
* - Bruno Peixoto é mestre em Performances Culturais e bacharel em Artes Cênicas com habilitação em interpretação teatral. Professor de Técnicas Teatrais da Universidade Federal do Amapá. Fundador do grupo GTI, diretor e produtor cultural. Escreve em colaboração com o GO Teatro.