top of page
Buscar

Se é para o bem de todos e felicidade geral da nação: FICO

Companhia chilena Tryo Teatro Banda revisita o país e a história da nossa Independência.


Neste mês, comemoramos (ou deveríamos ter comemorado) o bicentenário da Independência do Brasil, com direito à insólita passagem do coração de D. Pedro I pelo país, vindo de seu local de repouso em Braga, Portugal. Neste mês que já se acabava, com a ansiedade eleitoral crescendo entre nós e ofuscando os vestígios da data marcante, chegou do Chile a Goiânia um espetáculo que nos coloca de novo diante de Dom Pedro I.


FICO, da companhia chilena Tryo Teatro Banda, teve apresentação no Teatro Sesc Centro no dia seguinte à apresentação de outro espetáculo em que atua o seu diretor, o brasileiro Júlio Adrião. Ele trouxe mais uma vez para Goiânia seu longevo e contagiante A Descoberta das Américas, do qual você pode ler a crítica de 2018 aqui no GO Teatro. O espetáculo se atualiza, respondendo às cobranças do tempo e anseios do próprio ator, mas a essência permanece, o carisma está lá e o vigor de Júlio para narrar o encontro entre dois mundos ainda nos deixa sem fôlego.


O Tryo Teatro Banda é uma companhia com 22 anos, e mais de 20 espetáculos montados. Os integrantes também são músicos e os trabalhos da companhia vão de grandes obras em formato de Ópera a monólogos singelos como FICO, mas sempre com a presença de música original, executada ao vivo – um dos pilares do grupo.


Outro pilar, definidor da identidade do grupo, é o interesse pelos temas históricos e episódios fundacionais do Chile e de toda a América. Os povos originários, a colonização, o imperialismo, as guerras, os processos de independência são objeto de investigação profunda para a construção das dramaturgias. Os espetáculos narram fatos históricos celebrados ainda hoje ou momentos marcantes e personagens de grande poder simbólico que foram se empoeirando na memória oficial da nação andina e do nosso continente.


FICO é uma aproximação com a história do Brasil, trabalho feito entre amigos chileno-brasileiros a partir de escritos de Vicente Pérez Rosales, um aventureiro, ex-senador e diplomata chileno do século XIX. Em um período conturbado de guerras por independência na América Latina, Vicente acaba abandonado por um capitão inglês em pleno Rio de Janeiro, em 1821. A partir do fato real e inusitado, cria-se uma improvável amizade entre o garoto Vicente e o príncipe regente Dom Pedro I, que se encontram por acaso nas escapulidas do príncipe para refletir sobre seu dilema: obedecer ao pai e voltar a Portugal para enfraquecer os movimentos pela independência, ou ficar e tornar-se o imperador do Brasil.


Em suas conversas, Dom Pedro dá pouca consideração aos apelos humanitários do jovem Vicente, que se afeta pela escravidão e questiona o alcance da liberdade vindoura. Para o príncipe, que apesar de dividido parece um pouco alheio a tudo, algo insensível, importa mais a monumentalidade, garantir que o Brasil seja um grande império indivisível, o status de liberdade. Já a Igualdade são outros quinhentos... É nessa distância das aspirações, nos contrastes com o Chile republicano e com a abolição de escravos ao redor do mundo na primeira metade do século XIX que se desenha a crítica ao atraso brasileiro que, mesmo pós independência, arrastaria o império e a escravidão até às vésperas do século XX.


A crítica pontua a dramaturgia, se insinua, e consolida-se ao final do espetáculo, que se desenvolve com leveza, ancorado na versatilidade e no carisma de Francisco Sánchez. O ator brinca com os idiomas, português e espanhol se confundem, e o público parece gostar da brincadeira. Francisco toca seu trombone acompanhado do Quarteto cAis, grupo de cordas carioca formado por Renata Neves, Karin Vertein, Isadora Sheer e Maria Clara Valle, e pelo compositor da música do espetáculo, o violonista chileno Simon Schriever.


Francisco Sánchez interpreta Vicente, Dom Pedro, Lord Spencer, as arvores brasileiras, o navio, os fogos de artifício... Ao estilo do colega brasileiro, ele é personagem e cenário, texto e ambiência; tudo se constrói a partir de corpo e voz. Além de tudo, toca e canta, valorizando momentos históricos e criando jingles e marchinhas sobre Dom Pedro e o Brasil, num fluido entrosamento com os músicos.


Sánchez demonstra destreza e expressividade nas técnicas cênicas que relembram a Commedia dell'arte e os menestréis medievais, estilo característico do Tryo Teatro Banda. A tônica é farsesca, com muito humor. A harmonia geral, como dito, é de uma singeleza acolhedora, que nos deixa à vontade para acompanhar a jornada de Vicente, que, assim como Dom Pedro, se confunde: este Brasil merece que eu fique, ou deixe-o?










O Tryo Teatro Banda se apresentou com o espetáculo FICO em unidades Sesc do Rio de Janeiro durante o mês de setembro e fez apresentação única pelo Sesc Goiás.
56 visualizações0 comentário

Posts recentes

Ver tudo
bottom of page