Espetáculos Dalí, Balanço e Sertão Hamlet inspiram reflexão sobre espaço e distanciamento no teatro.

O Teatro Goiânia retomou as atividades no mês de fevereiro após um período de recesso e reparos. Segundo a nova gestão da Secretaria de Cultura, recriada no atual governo do estado, a programação da casa passa por reformulações que visam valorizar a pluralidade das manifestações artísticas e combater o alegado clientelismo que permeava a pauta do teatro. Esperamos que as mudanças tenham efeitos positivos, que o Teatro Goiânia esteja mais acessível aos grupos e artistas e conte com programação mais intensa e diversa. Pois é fato que no ano anterior, sua pauta foi dominada pela programação musical da Orquestra Sinfônica de Goiânia, além de obras institucionais ou projetos-escola que não contemplavam o interesse público em sua multiplicidade de crença e sensibilidade.
A casa reabriu no início do mês com dois shows, de Pádua e Maria Eugênica. Posteriormente apresentou um festival de comédia e recebeu, na última semana, três monólogos de artistas goianos que integraram a mostra Solo em Cena. Na quarta-feira, 20, Adriana Veloso apresentou Dalí, com direção de Hugo Rodas, obra que narra a vida do pintor surrealista espanhol Salvador Dalí. Na quinta-feira, 21, Bruno Peixoto celebrou os dez anos do espetáculo Balanço, com direção de Edson de Oliveira e texto de Danilo Alencar; e por último, na sexta-feira, 23, Guido Campos trouxe mais uma vez a Goiânia o espetáculo Sertão Hamlet.
Antes de explorar as diferenças, vale ressaltar um dado comum. São três atores maduros e cativantes, com espetáculos que, embora apresentem fragilidades ou lidem com alguns desafios, têm no trabalho e na figura do ator o eixo e o cerne que lhes garantem vida e graça. Falo de algo que vai um pouco além do que se exige em termos de capacidade do ator de conduzir um monólogo. Falo de algo que, creio eu, está ligado ao momento da carreira, à fé no que fazem e à liberdade. Elementos que se traduzem no espetáculo, e aos olhos do espectador comum, em termos dos gratificantes chavões: brilho no olhar, desenvoltura e segurança. Para os iniciados, é energia que pulsa e presença que contagia.
As distâncias do olhar
O Teatro Goiânia é um teatro grande. Para os padrões da produção goiana contemporânea, ele é enorme. Com seus mais de 800 lugares, duas plateias e palco italiano, ele apequena a maioria das produções locais, muito mais pensadas para os novos teatros, com seu aspecto multiconfiguracional e com a valorização de uma atmosfera intimista. Isso posto, o teatro serve muito melhor de moldura a Dalí do que aos solos que o seguiram. Em Dalí, sua frontalidade inquestionável, o uso das projeções e do ciclorama e a opção quase épica por narrar a biografia do pintor dispensam a proximidade com o público e até muito ganham com a grandeza que adquirem as imagens projetadas, dentre elas algumas obras de Dalí.

Mas para Balanço e Sertão Hamlet, o efeito é inverso. A distância entre a cena e o público prejudica a contemplação atenciosa, quase cúmplice que esse teatro artesanal solicita. Os detalhes cheios de sentido, a relação com os objetos confeccionados no processo criativo, o valor singelo, e às vezes dúbio, de cada gesto são dimensões que se diluem no excesso de espaço entre o olhar e a cena. Sertão Hamlet ainda tem a frontalidade a seu favor e seu aspecto mais espetacular em várias cenas, assim como as músicas e o eventual uso do microfone lhe ajudam a preencher mais espaço. Balanço é quem mais sofre com a conformação da sala. Com o palco dividido em quatro direções, está montado para arena. A circularidade e os múltiplos vetores espaciais, que bem sintonizam com os avanços e recuos no tempo e com as muitas viagens da personagem, estão tolhidos pela frontalidade imposta e distante da plateia.
Não à toa, Guido Campos e Bruno Peixoto forçam o espaço, buscam alternativas para gerar a intimidade que suas obras requerem. Ambos se aventuram para fora do palco, entre a plateia, instaurando quebras da quarta parede. Se a artimanha serve para excitar os ânimos do público, por surpresa ou constrangimento jocoso, não é suficiente para construir a cumplicidade almejada. Antes, tais recursos ferem o isolamento que transforma as personagens em objeto de nossa observação. Da luz ao cenário, o jovem homossexual, oprimido no interior do Brasil, em Balanço, ou as personagens sonhadoras e desiludidas do interior do nordeste em Sertão Hamlet compõem um universo que apela a um passado comum que pede ser visto com nostalgia. Assim, as obras estabelecem um espectador comprometido, mas distante. De certo modo, é a proximidade física da representação aliada ao distanciamento de observador que permitem a nossa identificação e a reverberação de seus dramas no espectador.
Nesse sentido, Dalí é pura distância. A história de vida do pintor, os costumes de sua gente, seu contexto histórico, as cidades da Espanha, nada evoca a memória afetiva do espectador, nada incita seu universo simbólico imediato. Tudo é informação nova ou relaciona-se a outro conhecimento de pouco apelo emocional. Dalí é como um quadro, não requer proximidade pois acontece para ser visto e ouvido, quer informar, é eminentemente narrativo. De fato, narra em excesso, por vezes adquirindo o tom de uma palestra, carecendo de personagem e ação. O presente cênico em oposição ao passado da narração anula qualquer interpretação realista e o Dalí de Adriana Veloso está tão distante dos fatos quanto um Brás Cubas.
Particularidades
A tão alardeada excentricidade do pintor e o próprio surrealismo de sua arte pouco afetam a representação, que segue ordenada e cronológica descrevendo episódios da vida de Dalí. A peça mantém o interesse pois os episódios são interessantes e Adriana Veloso lhe empresta enorme carisma. A mímese se apresenta como um interessante recurso da interpretação, reproduzindo em momentos aleatórios imagens famosas de Salvador Dalí. São pitadas de surrealismo que resgatam a percepção do espectador e avivam a narrativa que se punha a arrastar-se.
Balanço, apesar de também narrar uma biografia, assim como Dalí, o faz por uma via mais dramática. Cada momento na história da personagem é trazido ao presente e vivido pelo ator numa atualização cênica. Ele não só descreve, mas (re)vive as experiências, ainda que de forma simbólica. Os objetos de cena, que remetem a distintos personagens e fases da vida do protagonista, são o elo entre o passado narrativo e o presente dramático. Essa lógica de presentificação se opera até mesmo na incursão do ator na plateia que acaba levando um espectador à cena para ocupar o lugar de outra personagem. Ao presentificar as situações narradas, Balanço interpela mais as nossas emoções.

Sertão Hamlet, por sua vez, se constrói sobre lógica mais complexa e maleável. Começa por interpor distintas camadas na representação: primeiramente temos o ator, sua história e a história do próprio espetáculo; depois, a referência shakesperiana; e, por fim, as personagens, criadas ou encontradas, no sertão do Cariri, no Ceará, durante o processo de pesquisa. Tudo se organiza em vários quadros cênicos independentes, às vezes referentes, que miram num crescente final em que o presente político e social brasileiro é o pano de fundo catártico no qual o espetáculo se dissolve e termina. Isso funcionou melhor na primeira apresentação que vi do espetáculo, em 2016. Agora, tendo em conta o espaço de apresentação, o ritmo se perdia e até questões técnicas, como o som alto que não deixava escutar o ator, prejudicaram o acúmulo de energia e sentidos necessários ao fechamento da obra.
A tradição popular e religiosa do sertão do Cariri informa a visualidade do espetáculo e também muito de sua sonoridade. Há um eterno retorno a esses elementos visuais e sonoros que acabam se repetindo em demasia e ocupando um tempo que prejudica o ritmo da peça. Nesse projeto muito pessoal, há algo de exagero que ressoa na personalidade do ator, responsável também pela dramaturgia e pela direção. Sertão Hamlet poderia ter-se valido de um olhar externo que lhe polisse os seus vários e admiráveis trunfos. Guido encarna múltiplas personagens, cada uma muito bem construída e caracterizada. Como já dito pela VEJA São Paulo, ainda que derrape na parte final da dramaturgia, “o solo é uma bela reverência ao ofício da atuação”.