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Um Amigo do Povo

"solidão… que poeira leve"

Um Inimigo do Povo - Festival MIRADA - 15/09/2022


} Vocês já viram no último texto que eu não estava um bom público - isso é o que os comediantes americanos chamam de call back, é o que os brasileiros chamariam de referência e é o que eu chamo de "criei um suspense aqui e se você ficou curioso vai ter que ler também sobre a outra peça a que assisti no dia 15 de setembro para entender". Eu ainda não sabia que não estava tão bom público por isso saí dos Arcos do Valongo e fui direto e reto para o Centro Cultural Português assistir à segunda peça do dia. Outro centro cultural santista que o MIRADA ocupa. Outro local histórico, construído em 1895 no centro da cidade. Um edifício belíssimo com dois teatros - uns com tantos, outros com tão pouco: meu sonho ter um teatro pra mim e eles tranquilamente tem dois. E quié que estava acontecendo lá? Meuza migos, na fria noite garoante, aquele centro português receberia um pedacinho da Noruega: a Baccan e Kavaná Produções Artísticas apresentou Um Inimigo do Povo, de Henrik Ibsen. Bora de dramaturgo clássico porque nem só de mudernagens vive um festival iberoamericano. Companhia brasileira, autor norueguês e centro português: como na mistura celebérrima do Brasil com o Egito, tem que ter charme pra ficar bonito.


Ibsen era um sujeito que sabia escrever uma peça com a precisão da espada de um samurai. Em 1882, querendo mostrar a hipocrisia dos pequenos burgueses, a venalidade da imprensa e a corrupção dos governos ele concebe e escreve a maravilha que é Um Inimigo do Povo. Aqui, Thomas Stockmann, um médico, homem de ciência, honesto pra chuchu, vai ter que lutar contra aqueles três diabos hipócritas, venais e corruptos. O dr. Stockmann vive numa cidade pequena que estaria às moscas não fosse o balneário e a estação de águas curativas que ele idealizou e ajudou a construir e da qual é médico. No último ano, o aumento do número de doenças entre os frequentadores do balneário fez com que o doutor se questionasse sobre quais os motivos dessa doençaiada. Ele coleta amostras, manda fazer testes e descobre: as águas estão poluídas. Antes do final do primeiro ato Stockmann é louvado, idolatrado e tido como herói da cidade. Mas começam também a se mover as forças reacionárias e os interesses econômicos. As mãos que antes afagavam, agora apedrejam e todas as bocas cospem na cara do médico. Assim Thomas Stockmann é declarado um inimigo do povo. Não dou spoilers de como nem o que acontece até o final. Mas se quiser saber da fofoca completa, veja a peça. É incrível como Ibsen prende a gente de uma maneira inarredável. Você fica ansioso pelos acontecimentos como se fosse com você. Minha irmã estava para dar uma tunda na galera anti-stockmann e eu iria junto sem pestanejar. E a montagem apesar de alguns elementos de distanciamento, não deixava de transmitir essa força do realismo ibseniano. Esses elementos são basicamente 3: a filmagem ao vivo da peça, transmitida numa tela para que vejamos detalhes que não teríamos de outro modo; a inclusão de momentos de canto por algumas das personagens; e maravilhosamente, um ponto que lê a rubrica inicial de cada ato, e ajuda, às claras, os atores em momentos de esquecimento. Essas escolhas da direção de José Fernando Peixoto de Azevedo são criativas e dinâmicas. Seja no uso das tecnologias, seja na criação do ambiente cênico, a direção sempre traz a trama para primeiro plano. Os figurinos de Anne Cerutti são também muito bonitos em sua simplicidade. São realistas por serem contemporâneos, com um leve sabor de passado. O dispositivo de cena de José Fernando Peixoto de Azevedo é também simples, bonito e funcional, conseguindo com poucos elementos reproduzir todos os ambientes pedidos. A música é feita ao vivo e a sonoplastia de Thiago Liguori, assim como a iluminação de Wagner Pinto e Gabriel Greghi são - eu tenho que repetir porque a qualidade maior desses elementos está na harmonia do todo, cê me desculpe - simples e bonitas. Agora nós chegamos na parte que eu não estava bom público. Antes, uma coisa que eu não te contei e que dá muito crédito a essa montagem: o texto vai na íntegra. Acho que o Stockmann tem um filho criança que não aparece mas esse é todo corte que eu percebi. Se teve algum outro corte, é tão pequeno que eu nem dei por ele - claro que não sei o texto de cor e não tava com ele no colo, mas aparecem os cinco atos e me pareceu que tem corte nenhum ali. Porém, aqui aparece a primeira agonia que me deu: em alguns momentos me dava a impressão de que os atores estavam correndo com as falas. Não que se atropelassem, longe disso. Todos dizem bem. Mas a velocidade das falas era alta. Eu fiquei pensando se corriam para compensar não ter corte, como se tivessem que terminar com tempo determinado. Porque Ibsen é meio palavroso e faz uma introdução longa das personagens e dos conflitos.

Depois uma questã mesmo de interpretação: o Stockmann, pra mim, era muito gente boa. Até meio sangue de barata. Quando li o texto, me veio um sujeito um pouco mais arrogante, um pouco mais altivo. Senti falta. Especialmente nos embates com o irmão, que também é prefeito e que também é diretor da estação balneária. Em um ou outro momento, aparecia uma raiva, uma gana. Uma fagulha. Eu gostaria de um Thomas menos bonachão e amistoso e um pouco mais fogoso e esquentado. E duas questãs de direção: por causa do corre em que, eventualmente, os atores estavam com as falas, perdiam-se nuances. Chegava o texto, chegava mesmo o drama, faltava o colorido. A segunda questã é que eu senti muita falta de um sentido um cadiquim mais trágico para o Stockmann. Pra mim, tudo nadou mais ou menos tranquilo para aquele pessoal, seja na louvação seja na detração. Agora, que proeza foi ver todos os atores imersos nas personagens por três horas! Mesmo não concordando com a visão que se deu ao seu Stockmann, em nenhum momento eu poderia dizer que ele deixou de ser Stockmann. Ninguém ali se perdeu na personagem e nos dois únicos momentos em que o ponto teve que pontear os atores, estavam tão imersos que parecia apenas um outro recurso na manga que eles tivessem. A beleza tem dessas coisas. } Danilo Chaves é ator e dramaturgo. Ele viajou ao festival a convite dele mesmo - mas se quiserem me convidar pra ver qualquer coisa é só me procurar em @odanilochaves em todas as redes sociais.

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