A referência sobrepõe a criação no espetáculo Cinequanon da Focus Cia de Dança

A Focus Cia de Dança já é conhecida do público goianiense que pôde, por mais de uma vez, prestigiar o grande sucesso do espetáculo As canções que você dançou pra mim (2011), dirigido por Alex Neoral. O espetáculo está totalmente inspirado nas canções de Roberto Carlos e a trilha traz mais de 70 trechos de suas canções. Não é uma grande ideia inovadora nem muito sofisticada, mas o espetáculo prezava pela simplicidade e escapava ao risco de subscrever as músicas com o movimento, criando coreografias interessantes que fluíam com a trilha. Contando com o evidente apelo desse repertório, foi um estrondoso sucesso, com
anos em cartaz e incontáveis apresentações no Brasil e no mundo.
Se As canções que você dançou pra mim consegue equilibrar-se na linha tênue e arriscada de lidar com um material de tamanho apelo popular e movido pelo gosto pessoal de seus criadores sem cair na chatice de “dançar a música” ou ser dominado por ela, o mesmo não acontece em Cinequanon., também com direção de Alex Neoral. E a plateia que se lembrava com expectativa da anterior visita da Focus à cidade, frustra-se muito com esse mais recente trabalho da companhia, trazido a Goiânia pelo Sesc Aldeia das Artes. Aqui, a inspiração, novamente externa, apelativa, calcada no gosto pessoal, é o cinema, mais especificamente uma lista de inacreditáveis 80 filmes que supostamente dão o tom, o ritmo e o clima do espetáculo.
Cinequanon é escravo não do Cinema, mas dos filmes a que faz referência. Baseia sua visualidade e suas coreografias não na linguagem cinematográfica, mas nos conteúdos desses mesmos filmes. Daí resulta uma profusão de personagens tipo, pois não há tempo para aprofundamentos, correndo pelo palco e entre a plateia: a mocinha indefesa, o gangster mafioso, o casal em perigo, ou mesmo personagens individuais de filmes identificáveis. Tudo muito rápido e sem propósito, de modo que as referências aparecem como citação ligeira e o Cinema, que deveria ser o grande homenageado ou a grande inspiração, é tratado com superficialidade.
Não bastam as projeções na tela transparente que emulam as projeções do cinema em película e a abertura e os créditos da obra na telona. Tais recursos são um flerte com a plateia, podem até preparar a atmosfera, antecipar o jogo, mas era preciso ver cinema na dança, nas coreografias, no tempo e no espaço, e ele não está lá. Surgem momentos interessantes, como quando os bailarinos, caracterizados como um mesmo personagem, se revezam em cena: um sai por um lado o outro entra por outro, num jogo ágil que desperta nossa atenção. Noutro momento, a composição da cena se desdobra no tempo, com repetições em que a cada vez se inserem novos elementos que se conectam com o que já assistíamos. Assim, os sentidos se transformam e se ampliam. Esses momentos têm potencial, absorvem as ideia de montagem e edição, mas infelizmente não duram. Não se lhes dá tempo para crescer, há muita pressa para referir e citar superficialmente coisas que ninguém
vai entender.

As cenas, sem exceção, não comunicam bem, não provocam o que propõem e nunca se sabe ao certo se se pretendem sérias, afirmando o drama da temática levantada, ou se estão no lugar da reprodução dançada que homenageia o filme sem comprometimentos próprios. As coreografias são estéreis, muito apegadas ao objeto de inspiração, de modo que não adquirem fluidez e independência. Estão a serviço de ilustrar a referência, são figurativas e teatralizadas no pior sentido. Também são muito montadas e acrobáticas, podendo se ver em diversos momentos a mão que espera, a perna que se prepara, o esforço para encaixar-se. Diante da inexpressão generalizada, a voz começa a aparecer, num esforço de fazer chegar sentidos ao espectador. Mas, sem ter no que assentar, os gritos de susto e desespero
divagam no espaço isolados, integrando a profusão de ruídos.
Infelizmente, quando um espetáculo se desenvolve nesses termos, a tendência é que com o avançar da obra e a cada novo momento duvidoso, tenhamos a sensação de piora. A essa altura, introduzir uma canção como Don’t let me be misunderstood, na gravação do Santa Esmeralda, o que num espetáculo bem conduzido poderia provocar a catarse do público, aqui vem como a pá de terra sobre a cova. É necessário sensível preparação para introduzir um elemento tão forte e de tanto apelo na composição de um espetáculo, e Cinequanon está
aquém da canção.
Nota-se em diversas cenas da obra um intuito político de problematização do feminino e dos imperativos de gênero, e até da presença desses temas no cinema clássico. Isso é patente nos duos, heterossexuais, responsáveis pelos momentos suspensivos e mais dramáticos do espetáculo. São coreografias conflitivas em que se ensaia um contraste entre o afeto e a violência, mas que resultam mornas e demoradas. Há um duo final com duas mulheres em que a tônica diverge: compreensão e cooperação entre os corpos. Esse discurso ingênuo se mostra também no travestimento dos bailarinos em determinada coreografia. Os homens vestidos de mulher e as mulheres vestidas de homem tem o nulo impacto que isso evidentemente causaria, tal como o nu e o beijo entre duas mulheres. Se bem lidamos hoje com uma onda moralista e conservadora, que ameaça inclusive a liberdade artística, esse tipo de provocação já foi feita décadas atrás e está superada como tal. Novos problemas
requerem novas formas de reflexão.
Rafael Freitas