Formandos de Teatro do Basileu França encenam texto do Teatro do Absurdo

Piquenique no Front, de Fernando Arrabal, escrita em 1952, é considerada um exemplar do Teatro do Absurdo, alcunha do crítico húngaro Martin Esslin para um conjunto de obras do pós-guerra que, segundo ele, se esforçavam por expressar teatralmente o “sem sentido” da condição humana. Como forma de questionar a adequação de uma abordagem racional do homem, tais obras subvertem formas e modos estabelecidos da cena, renunciando a instrumentos racionais de representação e ao pensamento discursivo, de modo que implodem a narrativa, a verossimilhança e a lógica realista.
O caráter subversivo dessa linguagem abre caminho para o teatro contemporâneo, pois é através de uma poesia que surge a partir de imagens concretas no próprio palco que se constroem os questionamentos e a crítica. Em seu conjunto, as obras do dito Teatro do Absurdo têm um profundo teor existencial e se aproximam por características como um sentido tragicômico, personagens com pouco desenvolvimento psicológico, presos a repetições e a enredos cíclicos e sem solução, diálogos com clichês e jogos de palavras, entre outros recursos.
Piquenique no Front leva a guerra à cena, expondo uma temática de forma muito mais clara do que fazem obras mais conhecidas do Absurdo como Esperando Godot, de Samuel Beckett, em que a situação e as personagens não nos dão nenhuma notícia sobre o tempo e o espaço da ação, ou em que universo ela está inserida. Em Godot, sequer sabemos o que as personagens estão fazendo ali diante de nós. Arrabal elege o front como lugar do drama e se aproveita do aspecto suspensivo característico dos períodos de guerra para deslocar seus personagens do mundo real, mundo esse que, longe do front, permanece uma referência para o espetador, de modo que os absurdos dramáticos que vemos em cena refletem, em última análise, o absurdo do próprio estado de guerra.

Sob direção de Renata Weber, a turma em formação do curso técnico de Interpretação Teatral da Escola do Futuro em Artes Basileu França, levou ao placo uma montagem da obra de Arrabal. Piquenique no Front é um texto curto, ao qual recorrem muitas turmas de estudantes, pois tem estrutura e indicações cênicas simples. Uma montagem modesta e objetiva não deveria chegar a quarenta minutos de duração. Esse não foi o caso aqui. Renata aproveita todo o espaço que o texto deixa à encenação para levar os alunos-atores ao exercício da atuação em diferentes chaves e linguagens.
Num ano em que o mundo viu a guerra retornar à Europa, soberanias estabelecidas sendo invadidas e voltamos a nos preocupar com a ameaça nuclear, o espetáculo nos coloca a contemplar o horror. Após o período mais intenso da pandemia, em que um horror com ar de novidade nos chocava, a guerra nos recolocou diante do horror que vem das mãos humanas, que sempre existiu, mas que em certos períodos se faz mais distante de nós. O espetáculo dos formandos consegue dar conta dessa diversidade terrível e desse acúmulo de tensões em que o mundo se encontra desde 2020. O impacto se dá na primeira cena, em que corpos em conjunto, embora em grande número, se apequenam, esmagados por uma intensa e perturbadora paisagem sonora e luminotécnica, que perdura sobre eles e sobre nós, público, distendendo nossa percepção.
A montagem alterna entre a representação do texto, na chave irônica característica de Arrabal, e representações imagéticas de violência, sofrimento e dor, da guerra enfim. Esses dois eixos do espetáculo perfazem de modo escrachado um recurso presente no Teatro do Absurdo, que é confrontar a brandura, o humor, a cordialidade – o trato social burguês – com o horror e a tragédia. Aqui, a encenação leva essa oposição presente na ironia dos diálogos à instância visual, e os momentos imagéticos, de caráter performático, levam os atores a assumir outros estados e corpos que desaparecem com as personagens e massificam as individualidades.

Nesse sentido, a alternância de atores nos papéis colabora com a despersonalização, embora as personagens do texto sejam em si caricaturas. As transições de cena e de atores ocorrem de forma solene, encaixadas na trilha e na dissolução dos climas de cada cena, o que dá ao espetáculo, além do aspecto absurdo, um caráter épico que o engrandece. A distensão do tempo, a permanência das imagens que são deixadas a reverberar diante de nós aprofundam seus sentidos e valorizam o trabalho corporal, assim como a luz e a música, tudo é trazido a uma contemplação detida. No conjunto, as individualidades dos atores imprimem diferentes tônus e temperamentos aos personagens, polimento que requer tempo e entrega coletiva, um dos maiores desafios para montagens escolares.