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Um Violinista na Arquibancada

(apitos de barco ao fundo)

c h ãO - Festival Mirada - 15/09/2022


} O MIRADA não para. Não para não. Não para. O que é uma delícia ainda mais quando temos um dia lotado de atrações para nos carregar. Aguenta firme que hoje a sessão é dupla e começa logo ali perto das docas do porto de Santos, nos Arcos do Valongo.


No meio do centro histórico, na zona portuária de Santos, aparece este centro cultural maravilhoso chamado Arcos do Valongo. Combinemos: só pelo nome já arrebata corações. Vai lá, fala em voz alta, fala sussurrante, fala com carinho: arcos do valongo. Além do nome, você também se encantaria com a arquitetura antiga, os tijolinhos à mostra, o espaço enorme, os paralelepípedos e todo outro detalhezinho que você pudesse catar ali.


Quando entramos a sala de espetáculos temos um chão coberto, até a metade, por penas pretas, e um sujeito sentado de costas para a platéia de frente para um teclado. É a primeira imagem concreta que temos de c h ãO, espetáculo das coreógrafas Marcela Levi, brasileira, e Lucía Russo, argentina.


Além do tecladista e das penas nós vamos aquele chão será pisado por outros 5 artistas-performers. Pisado é força de expressão: um dos performers anda engatinhando o tempo todo, outro faz um belíssimo deep - sim, o movimento de vogue - quase metade da apresentação, um terceiro caminha decidido na ponta dos pés e, finalmente, a quarta dança os mais diferentes ritmos. Aliás, até chão na primeira frase deste parágrafo é força de expressão, o quinto artista performer fica na arquibancada onde está a platéia.


Descrever c h ãO não vai ser tarefa fácil, especialmente para mim que não sou lá um fã de performance. Mas calma, não desiste de ler o resto do texto porque já vou avisando: esta performance se enraiza e cresce em você. As imagens são poderosas e ainda estão se movendo aqui na minha memória. Principalmente pela comparação com a outra peça que assisti no mesmo dia. Sim, este é meu gancho dramático para que você leia meu outro texto do dia 15.


Daqui a um minutim, eu vou chamar esse espetáculo de dança-teatro e cês briguem com meu cérebro se não concordam ou não conceberam o espetáculo assim. Pra mim é mais fácil, mais rápido e mais simples. Então vamo por esse caminho mesmo.

Dança-teatro é uma daquelas linguagens híbridas em que vale tudo, vale o que vier, e diferente do preconizado pelo Tim Maia, vale até dançar homem com homem e também mulher com mulher. Contudo, aqui ninguém dança exatamente com ninguém. Dançam juntos no mesmo espaço, dançam ao mesmo tempo, às vezes chegam a criar uma ou outra correlação que logo se dissolve de novo em dissonantes coreografias.


Não tome esse dissonante aqui por uma crítica, não me leia como se algo aqui esteja ruim ou errado. Não é por esse lado. Você pensa muito mal de mim, credo! Dissonante apareceu aqui porque é mesmo o conceito por trás deste espetáculo - quem falou foram as próprias coreógrafas, viu? Essa mesma dissonância acaba por criar essas relações involuntárias entre as ações dos artistas. Porque eu não disse, acho que eu ainda não disse, eles repetem uma ação até a exaustão. Alguns nunca saem da mesma ação do começo ao fim do espetáculo, outros até mudam de ação e não dá outra: mal mudou começa a repetição.


É um espetáculo eminentemente físico, embora no começo haja um longo texto recitado pelo sujeito que engatinha ad infinitum - e outros excertos de textos serão falados mais à frente. Essa dissonância das ações, o texto, também ele, recitado de forma levemente alterada, a repetição inacabável vão gerando um desconforto cumulativo de acabada beleza. Acho que achei uma palavra pra definir melhor a sensação, melhor que desconforto: estranhamento.


A música é parcialmente tocada ao vivo, e quando gravada temos ecos de Os Mutantes, Chiquinha Gonzaga e blues. Os figurinos são minimalistas - basicamente tênis e shorts curtíssimos - o que nos permite ver os corpos dos performers em toda sua beleza de suor, sem sangue e sem lágrimas. A iluminação varia entre uma luz chapada e devassadora e uma iluminação algo lírica e soturna.


Agora eu venho aqui jogar alguns pontos altos do espetáculo, aquele momento em que eu te dou um gostinho do que você perdeu. Por exemplo, um dos artistas que de repente cai num deep e volta a ficar de pé como se fosse de mola. Ou o tecladista que é bailarino e é músico, e de repente cai do banco num deep e volta a tocar. Ou o modo altamente sarcástico e perturbador com que o artista engatinha, rondando o fundo do palco dizendo seu texto. Ou o sujeito que começa a fazer toda a coreografia de Single Ladies depois de horas repetindo uma movimentação preciosíssima. Ou a lufada de vento, que espalha as penas pra todo canto, e dá entrada a uma artista que durante um tempo infinito parece tomada por uma música que ninguém mais ouve.

Eu não seria o sujeito certo para louvar um espetáculo híbrido assim. É uma pena que eu não seja um fã de performance porque sei que eu poderia falar muito mais e muito melhor. São várias penas espalhadas pelo chão de c h ãO e essa minha é a menor delas. Existem imagens poderosíssimas, de uma beleza pungente, momentos de cada artista que me enlevam e que ganham força cada vez que trago eles na minha lembrança. Acho que numa segunda vez eu teria gostado mais. Porque mesmo reconhecendo a beleza enquanto estive ali, ainda assim, num dado momento, eu tive a chance - ou perdi a chance - de reparar em como a luz azul ficava bonita no branco dos meus sapatos.


Ontem, eu não tive talento de ser público. }


Danilo Chaves é ator e dramaturgo. Ele viajou ao festival a convite dele mesmo - mas se quiserem me convidar pra ver qualquer coisa é só me procurar em @odanilochaves em todas as redes sociais.

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