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Uma stand up tragedy na cadeia

Drama e humor buscam o consenso em monólogo de Vinicius Piedade.

Vinícius Piedade interpreta e dirige o monólogo Cárcere. Foto: Tati Wexler.

A crítica Bárbara Heliodora declarava em entrevistas que deu nos últimos anos que não aguentava mais a quantidade de monólogos que se produzia dada a dificuldade financeira para se montar espetáculos com grande elenco. Ironizava ainda que uma peça com três atores já estava no patamar das superproduções. Vinícius Piedade, do espetáculo Cárcere, que se apresentou na última semana em Goiânia, discorda de que seja mais simples produzir e viajar com monólogos. Se determinado ou não pelas condições de produção, o fato é que os monólogos se tornaram um produtivo filão do recente teatro brasileiro. Além de Cárcere, outras duas obras de passagem recente pela cidade são indicativos desse movimento e apontam ainda para uma valorização muito interessante da criação dramatúrgica, essencial em trabalhos como esse. Refiro-me aos espetáculos Colônia, com Renato Livera e A descoberta das Américas, com Júlio Adrião, ambos com críticas publicadas aqui no GO Teatro.


Em Cárcere, em algum momento, é o próprio Vinícius Piedade quem dá a definição presente no título dessa crítica. Demonstrando consciência do que faz, o ator confessa em tom debochado as contradições do seu trabalho, cunhando-lhe o selo de uma stand up tragedy. Em cena anterior, já havia declarado que estava ali usando da prisão do personagem para falar da nossa liberdade, assim como noutro momento esclarece as possibilidades metafóricas do cárcere como trabalho, casamento ou a vida em sociedade, algo que já se havia sugerido antes de forma mais autêntica. Há uma necessidade de dizer o que a peça é, talvez porque em sua essência e fluxo ela mais confunda do que encaminhe as leituras. Estão lá a crítica ao sistema penitenciário, as divagações sobre a liberdade do homem e a homenagem aos grandes pensadores que produziram no cárcere. Mas ficamos sempre à espera do aprofundamento de alguma questão, pois cada passagem da história que se constrói teima em soar como um parêntese cômico, às vezes dispensável.


A peça está estruturada em cima de contrastes, alguns eficientes, como é o caso da iluminação que abusa do foco direcional e de uma lanterna para criar espaços restritos e cortantes, que junto à trilha agitada de Manuel Pessôa, evocam claustrofobia e inquietude. No entanto, o contraste que nasce por recorrer ao stand up para narrar uma tragédia e aquele que opõe o passado de um aprendiz de música ao presente de um presidiário, esse contraste é exagerado e tem pouco respaldo dramatúrgico, de modo que o fantasma da inverossimilhança toma espaço e leva o público a duvidar. A influência do stand up é definitiva e às vezes aborta a potência dramática das cenas. Quando Vinícius nos conta sua formação como pianista, o necessário retorno ao passado flerta em demasia com o estilo e o ritmo da narração de casos e anedotas que os humoristas empregam no stand up. Assim, por um bom tempo a peça não acumula, no presente, força dramática e chega aos seus momentos finais sem que a tragédia do personagem, nem ele próprio, tenham o peso que poderiam ter.


Tudo isso não quer dizer que a peça não tenha humor e que Vinícius Piedade não seja um bom comediante. Sobram-lhe recursos vocais e criatividade, além de coragem e desenvoltura para lidar com o público, a quem deixa por vezes a responsabilidade de compor a cena em conjunto - o que lhe expõe a riscos e surpresas que consegue driblar sem incômodo. A peça é longa e a insistência da leveza vai aplacando aos poucos a expectativa por uma gravidade almejada, mas não alcançada. A um ponto, já embarcamos na onda stand up e já se pode desfrutar da boa conexão que Vinícius cria com o publico, da liberdade que adquire em cena e da curiosidade que causam certos recursos, como a lanterna, única responsável pela iluminação de grande parte do espetáculo – e que está às vezes nas mãos da plateia. Vinicius Piedade dirige a si mesmo, expondo-se ao risco que o artista corre, mesmo com uma autocrítica aguçada, de não atinar para o grito desnecessário, o vício da voz ou o descartável de uma movimentação. Ele assina ainda a iluminação e, junto com Saulo Ribeiro, o texto.


Rafael Freitas

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