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Ata e desata

Atualizado: 12 de set. de 2018

Finalmente, Goiânia pôde assistir ao espetáculo Nós do Grupo Galpão.

As personagens, sem nome nem relação definida, se reúnem para fazer uma sopa. Foto: divulgação.

Da confusão e do blá blá blá do começo do espetáculo, em que o espectador se esforça para acompanhar e compreender o que parece, mas pode não ser, uma reunião familiar, ao final, onde o mesmo espectador se vê dançando sobre o palco com os artistas, em êxtase, num clima de balada, o que mais impressiona nesse arco de sensações não é a virada modernizante e abertamente política que rompe com a tradição de teatro popular e de rua que construiu a fama e o reconhecimento dos 36 anos de estrada do Grupo Galpão. No espetáculo Nós, apresentado em Goiânia no último domingo dentro da programação do SESC Aldeia das Artes, o que mais impressiona, na passagem do esforço racional ao torpor comunal da experiência, é o evidente sucesso no controle do ritmo, no tom da piada e na comunicação com o público que nos leva à comungar. Nós faz jus ao nome pois logra esse estado no teatro em que artistas e público compartilham juntos a mesma experiência.


Há, sim, muito conteúdo político, e muito se fala em guerra, em mortos, em escolas fechadas, em opressão policial, em refugiados, em violência e preconceito, fala-se um pouco de tudo. E dentre tanto, algo às vezes surge de interessante, em momentos que vêm sem a ingenuidade daquele que acusa a maldade do mundo ou sem o peso de uma ancoragem factual que, se bem esclarece o espectador e refere a peça à realidade, fere o universo alegórico criado com a reunião das personagens na preparação de uma sopa. Com efeito, a peça elabora uma dinâmica ambivalente em que a reunião “familiar”, de dramaturgia mais tradicional, com situação e personagens mais bem definidos, alterna-se com momentos mais performáticos, confessionais, em que predomina o conteúdo político. Por vezes, ecoa na mente do espectador a pergunta recorrente da personagem de Teuda Bara: “Do que é que vocês tão falando gente?”


E eles estão falando de tudo. Fazem mais que uma sopa em cena. Além daquela quentinha, servida ao público em determinado momento, servem um sem fim de questões, frustrações e tragédias que refletem, pela imprecisão do discurso, o caos das ideias e argumentos que nomeiam e fomentam as ditas crises moral, política, econômica... O melhor momento da peça é ainda ao início, enquanto a ambivalência não se instalou e forma e conteúdo se confundem: caos, desordem, estancamento e agravo numa partitura de ações e falas que se repete e se intensifica. Um jogo cênico de muito vigor que, ao mesmo tempo que perde, ganha sentido. É arrebatador. O que vem depois é restauração. Pois se a ambivalência se instaura e amorna o espetáculo, algo compreensível com um clímax tão adiantado no percurso da obra, o diretor Márcio Abreu, com consciência e criatividade traça trajetória convergente para essas linhas condutoras. Nós retoma força na medida em que o performático contamina o dramatúrgico, e vice versa.

A música, ao vivo, que é uma das marcas do grupo também está presente.

O espetáculo sugere tolerância e harmonia. Dá o exemplo do lado de fora: com o diretor e o grupo, de carreiras e estilos tão distintos, unidos num trabalho sólido, que apresenta o melhor de cada um. Márcio supera o desafio, demonstra sensibilidade e pulso firme, enquanto os atores do Galpão esbanjam segurança e simpatia, efeito da visível satisfação de estar em cena. E dão também o exemplo no lado de dentro: ao evoluir de modo a que desapareça a divisão formal que comentamos, o espetáculo afirma seu potencial restaurador; vai desfazendo as barreiras entre cena e performance, entre artistas e público, entre festa e teatro, e criando unidades. Diretor e grupo se fizeram “nós”. Atores e público se fazem “nós”. E levados por essa comunhão enérgica e constantemente revigorada, com seu vai num vai, com suas idas e vindas, com seus mas e poréns, a peça dá em nossas cabeças outros tantos nós.

Rafael Freitas

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