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Quando é legítimo matar?

Formandos do curso de Qualificação em Interpretação Teatral do Basileu França encenam O Verdugo de Hilda Hirst


O Verdugo é uma das obras dramáticas de Hilda Hirst, escrita em 1969, e foi o texto escolhido para o espetáculo de formação da turma de Qualificação em Interpretação Teatral de 2022 da Escola do Futuro em Artes Basileu França. A montagem integra a programação do Desaguar, uma mostra em que os alunos em formação apresentam seus trabalhos e o resultado dos processos desenvolvidos ao longo do ano. A escolha do texto faz parte da homenagem que o festival dedica esse ano às dramaturgas brasileiras. Todos os trabalhos são de autoria de mulheres.

 

Verdugo é um carrasco, o indivíduo responsável pela execução dos condenados. É difícil precisar na obra de Hilda o tempo e o espaço da representação. A autora cria um universo que mescla referências medievais com outras contemporâneas, aspectos bíblicos com outros laicos. O resultado é uma atemporalidade que serve bem ao propósito do texto de refletir os comportamentos coletivos a partir de um microcosmo universal. Na montagem dos formandos, essa atemporalidade foi traduzida visualmente, com figurino e maquiagem que nos retiram da referência contemporânea, mas não nos deixa em nenhum lugar reconhecível. Os fatos que vemos em cena não aconteceram em lugar nenhum, e por isso poderiam acontecer em qualquer lugar.

 

Embora no texto o que se discuta seja uma execução, a peça trate-se antes de um julgamento. O Homem, um personagem misterioso, já foi condenado sem que ninguém tenha certeza dos crimes que cometeu. Ele fala demais, talvez fala o que não deveria. Mas o fato de que o verdugo se recusa a executá-lo, sendo a única pessoa que poderia fazê-lo, restabelece o juízo. E dessa vez, quem está no banco dos réus é a sociedade como um todo.

 


O Homem foi condenado por um sistema baseado no cinismo daqueles que aceitam as coisas como elas estão e priorizam suas garantias pessoais: os juízes que apenas cumprem a vontade de forças superiores e a mulher do verdugo, que defende a execução de olho na propina que prometem à família, dada a complexidade do caso. Do lado oposto, voltando-se contra a execução, estão os sensíveis e autênticos: o verdugo e seu filho, que diante da possível injustiça se colocam contra o sistema e aderem ao discurso poético-revolucionário d’O Homem.

 

De fundo, temos uma ideia de sociedade estratificada entre opressores e oprimidos. Acima, as forças superiores, que segundo os juízes vão matar O Homem de um jeito ou de outro, cedo ou tarde; e abaixo, o povo, empobrecido e faminto, que anseia por salvação ou qualquer meio prático de um alívio imediato de suas privações, suscetível às circunstâncias e simpático à utopia dos discursos do condenado. Na esfera familiar, o conflito entre o verdugo e a mulher está pintado de preto e branco: a justiça e a verdade contra o cinismo e o engano. Mas quando o conflito extrapola para a praça pública a questão ganha contornos cinzentos, trágicos. Na complexidade das forças e interesses em jogo, não há espaço para idealismos e aqueles que ocupam a posição de vítima podem, de um salto, ocupar o lugar do algoz.

 

Na composição do espetáculo, o grupo de alunos, orientados pelo professor Hélio Fróes, acrescentaram ao texto alguns poemas da autora. A poesia de Hilda entra como forma de desdobrar o núcleo dos cidadãos que, para além da participação no julgamento, passa a ser representado nas dimensões da afetividade e da sensualidade. Afinal, “a gente não quer só comida...”.

 


A montagem mantém O Homem sob sua aura de mistério, ele aparece em raros momentos de suspensão dos acontecimentos. Ele recita versos, ele canta. Sua diferença com o que o rodeia é marcada também na luz que o ilumina, recortada, dinâmica. Essa sublimação da personagem reforça seu caráter simbólico e a implicação dos cidadãos no rumo dos acontecimentos. A cena inicial, em contra-luz, mostra os personagens diante d'O Homem, instalando uma marca do trabalho corporal do espetáculo: o movimento pendular do corpo dos atores. Será o tempo, inexorável, que aproxima a iminente execução? Ou será o estado hipnótico em que seres suscetíveis se colocam frente a um líder carismático, que fala o que lhes toca os ânimos e as preocupações? Qualquer semelhança com a realidade não é mera coincidência. Em qualquer dos caos, a montagem e a pesquisa dos alunos nos coloca uma questão: é legítimo o direito de matar?


O elenco de alunos-atores está bem familiarizado com o texto. Percebe-se que participaram do processo criativo de forma dedicada, propositiva, tendo alcançado uma consciência clara da proposta textual, assim como da concepção cênica do espetáculo. Não é raro em trabalhos no âmbito educativo que a articulação estética ou a referenciação teórica ultrapasse a compreensão dos alunos, deixando os atores perdidos ou enrijecidos. Não é o caso desse O Verdugo, e da orientação de Hélio Fróes. Embora note-se diferentes níveis de entrega ao processo e distintos registros de interpretação, que se relacionam com os processos individuais da formação do ator, o elenco sabe o que pretende essa montagem.


Um dos trundos do trabalho é justamente sua despretensão. A turma tem um bom texto em mãos e se esforça por entregá-lo. Que o público conheça a obra em sua inteireza e suas provocações já é um ganho da montagem. O espetáculo chega até nós, as personagens se fazem conhecer e o incontornável conflito da obra de Hilda reverbera em nossas reflexões de espectador. Cada ator sabe do desafio que foi chegar ao resultado final, e cada um sabe algo em que poderá melhorar na tarefa complexa de interpretar em sintonia e com atenção a tudo que acontece em paralelo durante um espetáculo. Nos agradecimentos, os atores exalavam a satisfação pelo dever cumprido. A conclusão de um trabalho, finalizar a travessia conturbada do processo de criação e poder olhar o caminho percorrido, com o resultado em mãos, é um dos maiores objetivos do processo de formação e grandiosa fonte de aprendizado. Parabéns aos formandos, que sigam se desafiando!


Elenco: Aline Machado, Ana Tereza Passos, Danilo Mota, Isabella Cristinna, Larissa Braga, Lucas Santos, Mafe Santiago, Maria Laura Dornelas, Max Victor, Valdez Braga e Virgínia Perê

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