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A fatalidade do desejo

Sala 3 encena segunda parte de sua trilogia e aprofunda as abordagens lorquianas do feminino.

Vitória Santana e Graciela de Paula como Yerma e a velha pagã. Foto: Layza Vasconcelos.

A Cia de Teatro Sala 3 apresentou na última semana o espetáculo Yerma, no Teatro Sesc Centro. Essa é a segunda parte da trilogia rural de Federico Garcia Lorca, cuja temporada se encerra nessa quarta (26) com a apresentação de Bodas de Sangue. Yerma é um poema trágico em três atos, e à diferença da prosa de A Casa de Bernarda Alba, que abriu a temporada, apresenta uma trama que se prolonga no tempo, concentrada num único personagem. Enquanto no primeiro espetáculo o que se via era o desenrolar de uma intriga que dependia da ação de várias personagens para alcançar seus desdobramentos trágicos, em Yerma o estopim trágico está dado a princípio: Yerma não consegue engravidar – e é o agravamento de sua angústia e desespero, dado pelo tempo, que a encaminha à fatalidade.


Em Bernarda Alba, o espectador está a par de tudo. Ele vê cada coisa acontecendo, acompanha o desenvolvimento da trama a cada ação e fala das personagens. Trata-se de um material muito mais bem resolvido dramaticamente, que ganha sentido ao mesmo tempo em que vira cena. Puro presente. Em Yerma, no entanto, o componente psicológico, numa situação imutável, é muito mais determinante na elaboração de seu caráter trágico e no desenvolvimento da fábula. Yerma leva em si mesma os componentes inconciliáveis de um destino trágico: o profundo desejo de ser mãe, impossível de se realizar com seu marido; e um apego e devoção inegociáveis à honra e ao casamento.


Não por acaso, a poesia em versos permeia toda a obra de modo a expressar textualmente a atmosfera e as imagens mentais do eu lírico da personagem. Yerma também está dividido em quadros, pois os desejos e o aprofundamento da crise da personagem ganham presença cênica através de variados encontros com distintos personagens. Se a mãe, em Bernarda Alba, condensa em si todo o peso da pressão social, em Yerma essa opressão, além de internalizada, também está difusa em vários personagens, que às vezes sequer se relacionam com a protagonista. O “povo” a que o texto se refere a todo instante, que fala, que comenta, que aponta dedos, não tem cara, está um pouco em cada personagem, inclusive em Yerma. Ganha voz em seu marido, mas nem nele é soberano. Toda essa difusão do conflito, a densidade do material e a mescla de gêneros, mantidas na montagem da Sala 3, fazem de Yerma um espetáculo bem mais complicado, que cobra mais do espectador, e também do artista.


A montagem original da Sala 3 para a peça se deu em 2015 e passou por uma renovação do elenco em 2017. Não havendo visto a primeira versão, não nos cabem comparações, mas fica a indagação do quanto os novos atores terão se apropriado do material que se originou com outros artistas. O elenco cumpre com regularidade as cenas e muitas das marcas dadas pelo próprio texto, mas faltam-lhe, principalmente às personagens secundárias, um peso que contribua à densidade geral do espetáculo, que encaminhe suas conclusões tão terríveis. Falta que apareça, nas entrelinhas e um pouco em cada um, a frieza e a perversidade do “povo”. Ao riso, a que recorrem em demasia, falta amargura. Na cabeça de elenco, a Yerma de Vitória Santana, entre ansiedades e alguns atropelos do texto, tem bons momentos, demonstra potencial. O marido é interpretado por Iuri Vaz, numa atuação sem riscos, em algo estéril como o próprio personagem.


O texto de Lorca traz excessos em si mesmo. São muitos os personagens, os quadros, há mescla de gêneros, assim como são diversas as situações cênicas, que incluem desde lavadeiras num rio à uma romaria. Tanto na forma como no conteúdo tem-se manifesto o espírito hispânico do exagero e da sensualidade, ao mesmo tempo pulsante e reprimida. Tais características vão de encontro ao estilo do diretor Altair de Sousa, que não trabalha por minimizar as imaginações do autor e dá vazão a cada proposta, trazendo a poesia e a música como linhas auxiliares do espetáculo. Abortando, sim, as concepções um tanto naturalistas de cenário – o que praticamente se impõem ao nosso teatro na atualidade – Altair usa quase todo cenário como símbolo. As linhas de coser, os símbolos religiosos, as esculturas de bebês estão ali a todo tempo emoldurando, ou inseridas, na ação; reproduzindo visualmente os excessos já sugeridos por Lorca em nível dramatúrgico. O quanto esses elementos contribuem com os sentidos da tragédia ou redundam a literalidade cênica, ficamos a questionar-nos. Seria uma questão de gosto?

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