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Amor, festa e devoção

De Tempo Somos - 19/10/2022


A qualidade básica de um anfitrião é deixar seus convidados à vontade. Não é a qualidade básica de uma festa - claramente, a qualidade básica da festa é ter comida boa - mas sim a dos anfitriões. Receber bem é uma arte quase desaparecida. Quem hoje sabe reunir uma galera que, mesmo sem se conhecer, sinta-se tão bem ali junta que pareçam todos ser amigos de infância? O Grupo Galpão sabe e “De tempo somos - um sarau do Grupo Galpão” é uma festa maravilhosa que eles dão para o público e que onda, minha gente, que festa de arromba!


Sarau é uma daquelas palavrinhas que traz em si um certo esnobismo. Você ouve sarau e pensa em roupas de gala, taças de champanha, aquelas comidinhas minúsculas que não matam a fome, gente recitando um poema incompreensível e muita, muita gente, mas muita gente mesmo, fazendo carão de intelectual entendido de Heidegger. De tempo somos não é nada, mas nada, mas nada mesmo disso. É antes de tudo uma declaração de amor à música e ao próprio Galpão. Caso você esteja lendo esse texto e esteja um tanto quanto perdida aqui vai uma pequeníssima explicação: se o Galpão está em cena, vai ter música, música boa, e música executada pelos próprios atores.


Eu deveria parar esse texto bem aqui. Não existe muito mais a explicar. Deveria ser-me permitido dizer algumas palavras soltas e qualquer pessoa entender a maravilhosa que é assistir De tempo somos. Por exemplo, eu digo Galpão e vem a ideia de um grupo coeso, excelente e fundamental para o teatro brasileiro. Eu digo música e todo mundo já vê os atores do Galpão com algum instrumento nas mãos, interpretando músicas maravilhosas, com a mesma excelência esperada. Eu digo festa e você já entende que o espetáculo é alegre, lúdico, iluminado e que em 2022 comemora-se os 40 anos do Galpão.


- Como assim, Danilo?

- Assim mesmo! 40 anos devotados ao teatro neste país.

- E vale a pena?

- Vale demais, uai. Vê lá o espetáculo que você percebe.


Acabava esse diálogo, eu iria pra casa satisfeito de ter falado de um espetáculo tão lindo em tão poucas palavras e você iria pra onde você quisesse entendendo tudo o que eu quis dizer com aquelas mesmas poucas palavras. Mas seriam paroles et paroles et paroles.


Ou talvez eu devesse falar por horas a fio descrever em minúcias tudo o que acontece naquele espetáculo. Cada minuto, cada respiração, cada olhar que vem do palco certeiro para me atingir. Porque eu não tenho dúvida nenhuma de que eles queriam me matar. De amor.


Antes do espetáculo se iniciar efetivamente, já entram em cena os atores e começam a andar pelo palco, organizar os instrumentos, conversar uns com os outros. A naturalidade, a tranquilidade com que eles fazem essa inspeção já é pra mim um espetáculo. Aqui em casa, agora, sem ninguém me observar, eu não acho que eu esteja tão à vontade quanto aqueles nove atores em cima do palco prestes a “entrar” em cena. Eles se organizam, se conversam, se concentram [?] e se jogam.


Eu sou contratualmente obrigado a falar da iluminação deste espetáculo, que ela só, novamente, é um espetáculo a parte. Rodrigo Marçal, consegue fazer com que vejamos claridade no breu, uma alma iluminada. Pra começar o teto está tomado por uma infinidade de lampa que lembra às vezes uma festa junina - pra continuarmos no tema festivo - ou o céu estrelado. Eu queria ficar ali, deitado debaixo daquelas luzes, criando novas constelações. O Rodrigo não deixa! Em pouco a iluminação vai criar recortes, texturas, profundidades que você vê num Rembrandt ou naquele pintor barroco da sua escolha.


A direção do espetáculo da Lydia del Picchia e da Simone Ordones é quem cria esse ambiente familiar, tranquilo, de entrosamento total. Elas nos fazem sentir o tempo todo como se fôssemos convidados para aquela reuniãozinha na casa de velhos amigos de quem gostamos imenso. O figurino de Paulo André consegue ser cotidiano e rico em camadas, unitário ainda que pareça - e essa parecença é o truque mais difícil que existe - que cada um veio ali de casa com aquela roupa e resolveu cantar. Os textos selecionados por Eduardo Moreira são todos uma celebração do ofício de ator e do Galpão. Sempre tocantes e sempre recitados com verdade e perfeição - você me faça o favor de ler esse “recitados” do jeito certo: ditos não como uma personagem total mas como um artista frente ao público; não me vá imaginar que seja o Quico num palquinho improvisado na frente da casa do Seu Madruga com a mão no peito dizendo a plenos pulmões “Mamãe querida!”.



Inclusive uma pausa para explicar esse “recitados”: pense nalgo mais brechtiano, ou talvez numa personagem embrionária. A voz que fala ainda não é a da personagem toda e também não é mais a do artista. Não há exageros. Não há falsidade. Existe sim a beleza do texto entregue no colo do público.


Agora eu vou chegar num ponto complicado: a música. Existe um feitiço em música bem executada ao vivo que eu não sei explicar. Quando você vê alguém cantando com emoção, ou tocando algum instrumento muito bem, você simplesmente se entrega. Aquela plateia que estava comigo no dia 19, se entregou tanto que eu nem sei dizer. Primeiro que a direção musical e os arranjos do Luiz Rocha são maravilhosos. Aí me vêm aqueles galpônicos e cantam tudo quanto há de gênero de música: é rock psicodélico? A gente canta. É cantiga tradicional popular? A gente canta. É um madrigal polifônico à maneira do século XV? A gente canta. A preparação vocal da Babaya só pode ser outro feitiço. O pior é que você está tranquilo ouvindo as músicas, aproveitando seu momento, e não dá três músicas percebe: eles tocam todos os instrumentos. Eles todos tocam todos: quem tava com o bandolim, agora tá com uma flauta e na próxima música faz é percurssão. É uma orgia de instrumentos.


Quando você se acostuma com a maestria de todos em gêneros musicais, em instrumentos musicais, em recitação literária, me vêm aquele maldito bando abençoado e faz uma das cenas mais engraçadas que já vi - que acaba com 3 assassinatos por ganância e uma lição moral sobre não confiar em atores.


Lição de levar-se para a vida: se você não gosta de beleza, de festa, de teatro, não confie no Grupo Galpão porque eles são sempre essas três coisas.

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