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Escrito nas estrelas

Atualizado: 9 de out. de 2018

Cia. Indelicada quer falar enquanto pode de um futuro que se aproxima


Apresentação na Praça Universitária. Foto: Cristiano Sousa.

Na astrologia, mercúrio é o planeta relacionado ao intelecto e à comunicação. Em tempos de mercúrio retrógrado, o diálogo fica desfavorecido, o consenso prejudicado e a reflexão estancada. O fenômeno astrológico, que se repete três vezes em 2018, é associado à nossa atual conjuntura política no novo espetáculo da Indelicada Cia. Teatral, que busca, através do impacto no cotidiano das ruas, o efeito mobilizador de um pedido de socorro. Apresentando-se em diversos lugares de Goiânia, desde a calçada do Grande Hotel a praças como a Joaquim Lúcio e a Universitária, os atores se inserem no fluxo urbano com o objetivo de provocar uma discussão sobre a liberdade, aberta à diversidade do público passante e aos imprevistos do ambiente caótico da cidade.


O espetáculo Mercúrio Retrógrado, quarto trabalho da companhia e primeiro concebido como teatro de rua, ousa questionar em contato direto com a população as ameaças à liberdade que afloraram nos últimos tempos nos campos da arte, da política e da religião. A dramaturgia que encaminha as questões foi construída a partir de recortes: Charles Baudelaire, Fernando Pessoa, Shakespeare, Castro Alves, Artaud e Sócrates fornecem a maior parte do texto, cujo teor e a tônica da encenação evocam revolta e sentido de urgência. O universo dramático, segundo a sinopse da peça, é um mundo pós-apocalíptico. Apocalipse que surge mais como metáfora da pós-liberdade, pois o que vemos, de fato, são mendigos, representados na forma do tradicional mendigo-filósofo ou do bêbado-existencialista. Há ainda, noutra chave, um mendigo travesti.


A informalidade do espetáculo, que surge nalgum canto de praça, sem aviso, dota-lhe de uma aparente despretensão, que sintoniza bem com a ironia com que se dirigem as críticas. Os textos clássicos, antigos e até rebuscados, encontram seu contrabalanço numa estética urbana, de movimentações soltas, fogos de artifícios e referências à Gretchen. Alcança-se assim um espírito de atualidade que comunica bem com o presente e com o público. A ironia e o deboche são o que Mercúrio Retrógrado apresenta de melhor, de forma mais autêntica. Se por vezes a crítica se limita a acusar uma realidade hostil para o “povo brasileiro”, ainda assim logra-se um questionamento de valores. No entanto, quando atrelam o texto a factualidades recentes do nosso mundo político como o impeachment e o fracassado, mas insistente governo Temer, a leitura fácil e a identificação imediata do discurso traem o fluxo de ironia e o jogo espelhamento que se elaborava com as cenas anteriores.


João Bosco Amaral, que atua e dirige o espetáculo, se destaca com vibrante valorização do texto. É acompanhado pelo empenho de Evandro Costa e Ricardo Fiuza, que se debatem um pouco com o fôlego exigido pela rua e com a tônica que lhes cobra a ironia da peça. O cenário, de Lino Calaça, e os figurinos de Thiago Santana não apelam ao realismo; buscam a atmosfera pós-apocalíptica valorizando a teatralidade. Há, talvez, demasiados elementos na construção dos sentidos da obra que fatalmente se perdem por estarmos na rua. Gravações em off, músicas de fundo, detalhes de cenário e figurino, subtextos que se pulverizam em meio aos ruídos que o próprio ambiente urbano impõe ao espetáculo. Ficamos com a vontade de poder vê-lo numa sala, quando sabemos que a rua é sua razão de existir.


Essa crítica foi produzida em conjunto com os participantes da Oficina de Crítica Teatral do Seminário GO Teatro. A foto também é de autoria de um participante: Cristiano Sousa.

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