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Os sentidos e as palavras

Atualizado: 24 de ago. de 2018

Renato Livera retorce conceitos e a própria linguagem para extrair crítica e poesia no monólogo Colônia.

Renato Livera como professor, como filósofo, como louco, como poeta... Foto: Patrick Sister.

Diante de uma peça como Colônia, com Renato Livera e direção de Vinicius Arneiro, com seu positivo efeito de nos deixar surpreendidos e indagantes, o exercício da crítica se torna tarefa ingrata, além de um desafio. É um ato reflexivo que vai, indubitavelmente, trair a experiência da obra. A elaboração racional necessária à apresentação sintética das ideias e impressões sobre o espetáculo é um esforço que vai na contramão daquilo que a própria peça propõe e realiza no palco. Nesse monólogo, as digressões, o fluxo de ideias e as especulações conceituais se espalham e se acumulam, emaranhando-se como teia, ou, literalmente, como palavras, rabiscos e diagramas numa lousa. Acompanhá-los sem cair em digressões próprias

é tarefa árdua para o espectador.


Se por ventura isso soa verborrágico, é o caso de simples revés do relato. Pois a dramaturgia de Gustavo Colombini encontra saídas inteligentes e criativas para o desafio de criar com a linguagem. A construção textual e a evolução do espetáculo caminham para salvar o público dos atropelos, enredando-o progressivamente nessa teia de conceitos, metáforas e associações. A encenação, com um bem explorado uso da teatralidade, das suspensões e dos estranhamentos, além da ótima interpretação de Renato, oferece um estímulo sensível como contrapartida ao desafio intelectual. A síntese se dá em nível poético, e é na poesia que o caos verbal amplia seus sentidos. Quando nos damos conta, temos diante de nós a

violência e a barbárie do mundo feita voz e palavras.

Colônia tem o grande mérito da clareza, provando que uma arte crítica e reflexiva não prescinde de boa comunicabilidade. De saída, propõe-se uma situação: todo o espetáculo é como uma aula ou conferência, a qual nos oferece um personagem claro e definido, um palestrante de tom muito professoral. Mas a interpretação de Livera balanceia as sutilezas de um estereótipo de fácil identificação com os estranhamentos vocais e físicos que lhe provocam a afetação crescente com os temas e as complicações linguísticas e conceituais com que se mete. Forma e conteúdo estão alinhados e se complementam, evitando-se os

extremos da introspecção hermética e da aderência ligeira a discursos correntes.


A peça foi inspirada no livro Holocausto Brasileiro, de Daniela Arbex, que conta através de relatos a história do hospital Colônia, centro psiquiátrico que funcionou em Barbacena (MG) até os anos 80. Renato Livera, que é goiano, egresso da primeira turma de Artes Cênicas da UFG, foi o idealizador do projeto, que está em circulação nacional. Sua interpretação é destacável, ainda, porque logra absorver as ambiguidades e os duplos vetores da obra, de modo que o fluxo racional que elabora as considerações éticas e poéticas sobre o conceito de colônia se desenvolve ao passo em que se aprofundam a angústia e agonia de sua condição individual, que progressivamente o coloca, também ele, às margens da normalidade

instituída e regulamentada.


Se nosso intuito crítico trai a experiência sensível com a obra - o que se diz mais pelo elogio implícito do que pela real incompatibilidade dessas formas expressivas - é porque buscamos identificar as linhas gerais e os percursos do raciocínio criativo que precedem a encenação. O mérito da clareza de Colônia também passa pelo fato de que esse esforço do intelecto, embora manifesto na fluidez dramática, na teatralidade dos estranhamentos e no tratamento cíclico do texto, desaparece de forma exemplar no momento da representação. A tarefa, para nós, de apreendê-lo em suas linhas gerais é um feliz desafio, cujo prazer é análogo àquele da

experiência direta com a obra. Gratidão!

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