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Ressentimento e Revolução

Gota d’Água [a seco] fez temporada no Teatro Sesi em Goiânia.

Jasão e Joana. O amor, a culpa e o ressentimento em cena de Gota d'Água [a seco]. Foto de Edson Lopes Jr.

No prefácio a Gota d’Água, Chico Buarque e Paulo Pontes falam do Brasil da década de setenta no devir do crescimento e da modernização acelerados do milagre econômico, destacando seu aspecto excludente e o aumento da desigualdade social. Refletem o Brasil sob a perspectiva do conflito de classes e identificam o momento em que as classes médias começam a ser absorvidas no processo produtivo de uma economia mais diversa, na qual inclusive a produção cultural passa a ter caráter industrial e imediato.


Toda essa arquitetura social é transposta para a tragédia, que busca responder à preocupação dos autores em, primeiramente, retratar esse desenho social acusando a exclusão das classes inferiores, e, adicionalmente, trazer o conceito de povo de volta ao teatro sério brasileiro, na linha do que fizeram, como exemplos citados, Plínio Marcos, Guarniere, Boal, o Oficina e o Teatro de Arena. Gota d’Água adapta o mito de Medeia para um subúrbio carioca, no qual Jasão abandona Joana e os filhos para casar-se com a filha do empresário Creonte, que está promovendo sua carreira como sambista.


Para dramatizar o conflito de classes e as forças sociais, a peça adquire traços épicos, dos quais o formato de musical é o mais significativo. Também tem um elenco numeroso, pois cada força social tem um grupo que a represente. Gota d’Água tem força porque logra representar o coletivo, as forças impessoais de um universo em ebulição, cujo desenlace trágico se prepara de forma latente.


Originalmente, a peça marca com precisão a polaridade entre classes, tanto nas personagens como no espaço, e tem em Jasão a figura média, ambiciosa e culpada, que transita entre os dois polos. Um esquema que a montagem e adaptação de Rafael Pontes faz bem em reduzir a dois personagens. Essa reconfiguração responde tanto às condições de viabilidade de produção da atualidade, em que se observa a individualização dos projetos e a diminuição do número de atores, quanto responde à complexidade do recente debate político-social, que em muito questiona a aplicabilidade analítica do conflito de classes nas sociedades capitalistas contemporâneas.

A peça tem belos desenhos de cena em meio à cenografia de André Cortez. Foto de Caio Gallucci.

Em Gota d’Água [a seco], que tem cenografia de André Cortez, o espaço é redefinido constantemente por duas grandes armações de ferro com portais, janelas e vãos, que se remodelam de distintas formas com um jogo de dobradiças e pesos. Embora mantenha um espaço central ao fundo que se coloca como o lugar do poder, domínio do empresário Creonte, Jasão e Joana estão em constante trânsito, dizem seus textos enquanto sobem e descem, correm, atravessam e se embrenham nas estruturas móveis. Os belos desenhos de cena, fluidos e sinuosos, retratam um conflito que não tem chão firme, ou porque o amor e a culpa contaminam as resoluções, ou porque o presente é um tempo em que a objetividade é rarefeita.


Embora reduzindo Gota d’Água aos dois personagens centrais, em [a seco] Joana e Jasão absorvem o texto de outras personagens. Como forma de manter a dimensão política original, Joana assume algumas falas de Egeu, de viés revolucionário e politizado, enquanto Jasão absorve muito de Creonte, em seus juízos sobre o povo, sobre o brasileiro e, inclusive, sobre Joana. No texto, à diferença da encenação, o conflito está marcado, com suas pulsões contrárias concentradas em cada parte do casal. Os dois concentram em si universos, e no caso de Joana, a potência de Laila, com seu canto forte e atuação penetrante, extrapola a personagem dramática para adquirir esse status de entidade.


Jasão, porém, carece um pouco dessa grandeza. Seu figurino é diverso e chamativo, o que destoa da unicidade neutra do traje de Joana. Também faltou, talvez, demarcar mais sua trajetória de ascensão, cujo ponto culminante é assumir o lugar de Creonte, o que não está em [a seco]. Desse modo, diante de uma Joana que transcende a mulher ressentida, o Jasão de Claveaux pouco abandona o malandro ambicioso. Se há razões dramatúrgicas, no entanto, elas existem sem prejuízo das responsabilidades do intérprete. O espetáculo, contudo, é maior que seus pormenores; e a direção de Rafael Gomes é admirável pela engenhosidade da concepção e dos desenhos de cena, assim como sua adaptação do texto é um logro inquestionável.

 

O GO Teatro agradece à colaboração do Teatro SESI.

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